Imagem do cabeçalho: "O Grande Canal de Veneza" (detalhe) de Turner

sexta-feira, 15 de fevereiro de 2013

ABECEDÁRIO (m)



“M”, DE MORTAL

Eu não via um cavalo
Desde o século dezenove,
E agora há meia dúzia deles
Vagando pelas ruas deste bairro.

Observei ontem que um deles, o pardo,
Deitou-se no solo quente da tarde,
Talvez para sentir toda a extensão do próprio corpo.
É o mesmo que dispara sobre calçamento urbano,
Relinchando como um louco. 
Parece não gostar do ser eqüídeo.

Causa espanto o mais velho do bando surreal:
Macilento rocinante nesse entrecho quase rural:
Os ossos sobre suas ancas
Parecem o cabide para a túnica da morte.
Tem olhos sem apetite, embora coma ainda
Do mesmo capim sem fim.
Surpreende que não tenha chagas
Nas patas de aparência empedrada e gasta,
Mas na sua testa já se engasta a protuberância
Do que parece ser um córneo único helicoidal:
É provável que pertença
A alguma forma subjacente
Ao seu destino de besta de carga banal.


Gerhard Richter, Townscape M3, óleo s/ tela, 1968. (Daqui)