Imagem do cabeçalho: "O Grande Canal de Veneza" (detalhe) de Turner

terça-feira, 29 de outubro de 2013

POEMAS EVISCERADOS (8)



RESUMO

Por trás da cartilagem do nariz
Coisas semelhantes:
Nuvens e datas, datas e nuvens.

Sobre a almofada do cérebro
Uma fruta bichada apodrece,
O verme é uma cifra.

No redil estreito do coração,
Nomes de ruas e vielas.

No estômago,
Translúcida úlcera:
Lágrimas congeladas.

Na garganta,
Um despertador travado,
Os vocábulos jamais acordarão.

Nos intestinos,
A noite sem-saída
Dos bosques.  

     

sábado, 26 de outubro de 2013

POEMAS EVISCERADOS (7)



PAISAGISTA

A altura da coluna dorsal,
Por dentro,
Um jardim planejado em segredo
Entre venoso arvoredo:
Ali pulsa imponente flor central
Que gira, mas não é pelo sol
Quente:
Volta-se com paixão
Para a abóbada óssea,
Guarita do insone e cinzento
Jardineiro,
Que ilumina o horto
E dá nome aos espécimes novos
Do lírico canteiro,
Fazendo arranjos com os delírios
Dos lírios absortos,
Inocentes e propensos ao exagero.


domingo, 20 de outubro de 2013

POEMAS EVISCERADOS (6)



TOLICE

A cavidade abdominal
É um nicho perfeito,
Segundo dizem os tolos,
Para a ausência de santidade:
É por ali que se fincam
(supõem)
As raízes tuberosas do pecado,
Entre vísceras
E órgãos
Nos quais jamais se executará
- concluem -
Uma das sublimes 
Fugas de Bach. 



terça-feira, 15 de outubro de 2013

POEMAS EVISCERADOS (5)



POR PARTES


Antes os aforismos fraturados
Que os dias chuvosos dos grandes tratados.

O fragmento e seu valor de larva
Que insinua a falta do complemento.

Por exemplo:

Um trecho de veia, dois centímetros:
Falta o sangue.
Ou uma fibra de músculo,
Falta o movimento.
Um retalho do estômago:
Falta a fome.
Uma secção de uretra,
Onde a urina e o esperma?

E veja que as coisas impalpáveis
Também têm suas partículas,
Como os fonemas da bela frase floral 
Com que tu abrevias o inventário dos males.

Ou os segmentos do teu sorriso
Separados por vírgulas amarelas
Quando defendes a tese
De que a felicidade é indivisível esfera.

Um todo sem partes.


segunda-feira, 14 de outubro de 2013

POEMAS EVISCERADOS (4)



SUTURA-ESCRITA

Desenvolver a habilidade
De selar com linha e agulha
As feridas abertas. Sobretudo
Os talhos na cabeça.

Linha e agulha são palavras,
E o trançado em vírgulas
Vai até o pseudo ponto final
(essa célula que se divide),
Nada mais que laçada. Nó.

A finalidade? Uma cicatriz
Visível: fóssil de centopéia,
Insígnia, coroa, troféu.

Mas se fosse um corte preciso
Na jugular,
Tudo isso seria esforço inútil:
O vermelho inútil, perdendo-se.


sexta-feira, 11 de outubro de 2013

POEMAS EVISCERADOS (3)




LAUDO

Fora do teu tórax nem tudo está feito:
É o que sugere o vento incessante
A agitar as águas do estreito
De Bósforo.

Por dentro, a energia quase dissipada,
Eólica:
A alma pouco sopra:
Fica o veleiro à deriva no teu peito.

Outra travessia é iniciada.


terça-feira, 8 de outubro de 2013

POEMAS EVISCERADOS (2)



DISSECAÇÃO

Há uma pele na escrita,
Certo que dura duríssima
Por variada leitura
Crônica anacrônica.

Vale-nos um caco de espelho,
À maneira de bisturi,
Para lições de subjacências
Anatômicas.

Pela incisão veremos surgir
Músculos, tendões, nervos
Veias, artérias
E, sim, um fígado figurado
Que se regenera.

Porém, mas ao fundo
(tão íntimo que além-mundo)
Deparamos
Um luminoso osso externo,
Quiçá de fêmur adverbial,
Patela, clavícula ou escápula,
Atravessado - incomodando -
No estômago abissal
Da Via Láctea.


domingo, 6 de outubro de 2013

POEMAS EVISCERADOS (1)



TRANSPLANTE

A poesia é a flor doméstica
Que não está no vaso:
Alou-se ao ser cortada do galho
E fugiu para o topo frio da montanha,
Da montanha que não se ergue no vale,
Rarefeita que foi pela visão,
A visão que não se encontra nos olhos,
Mas orbitando ao redor dum músculo cardíaco
Que não pulsa no tórax original.