-a-
Hoje nuvens negras
Figuraram ameaças.
O vento as dissipou a tempo.
Toda nuvem escura passa.
Toda nuvem clara passa.
Não há senão lembrança
Vaga de qualquer nuvem.
Toda visão de nuvem esgarça-se.
-b-
Chove verão.
Rosto na vidraça fria.
Água cantando:
Sim não sim não sim.
-c-
Ouvido atento
Ao que a chuva dirá.
Se vier de longe
Trará notícias suas.
-d-
Van Gogh, propõe mais alto
O teu koan!
Tenho duas orelhas
E não posso ver-te.
-e-
Quando o luar se extinguiu
A vida me contou segredos:
Viver é aguardar presenças.
Um inseto se chocou contra
A lâmpada.
-f-
Tudo está brutalmente presente.
Defino isso como felicidade.
Ela, eu, eles, as coisas,
As formas, as cores e as ações.
Nada se excede
Ou sai de si mesmo
Para ocupar uma ausência.
Se isso acaso ocorre,
É um ato que termina e outro que
Começa…
-g-
Só sei fabricar imagens
Na intenção de que nelas
A poesia viva
Como um lobo que nunca vi,
Ou cante como um pássaro
Que cruza uma rua tranqüila.
-h-
O meu polegar é operoso,
Mas mudo.
Nada sabe de palavras.
-i-
A suavidade é o extremo da vida:
É a paixão que, ciente de si mesma,
Destila-se e escorre como córrego.
A brutalidade é que se represa.
-j-
Como uma gaveta
Com luz interna própria
Que é aberta ao sol
Do meio-dia
E ainda assim ilumina ao redor.
-k-
Quando uma folha cai
Ainda a vemos como árvore.
Se o vento a leva,
A árvore também se move.
Pois cada folha é toda a árvore.
-l-
Se me ouves
Enquanto falo
Tu me iluminas.
Mas se repetes
Minhas palavras,
Delas me perco.
-m-
A solidão deve ser o momento
De perceber o outro,
Jamais a ocasião de inventá-lo.
-n-
Um pássaro confidenciou à outro
Que a vida, esse momento
Entre o salto para o vôo e o pouso,
É trágica.
O outro respondeu:
-Não, a vida não é trágica,
Trágicos somos os pássaros!
E voou.
-o-
Inventar espaços próprios
É ardil da covardia:
Ser é desabrigar-se.
-p-
Tantos pássaros formam um bando.
Um só canta.
Qual foi?
Ele sabe que cantou por todos.
-q-
Pontilhões entre dois vazios
As questões que me proponho.
Desabam quando as atravesso.
Não almejo abarcar o mundo,
Quero um barco para cruzar
O meu mundano dia.
-r-
Acompanhei os movimentos do teu olhar
Inquieto
Como a pena de um sismógrafo.
Ele percorreu planícies lisas,
Quedou em vales fundos,
Cruzou cordilheiras tortas,
Planou sem rumo,
Sondou cavernas marinhas,
Levitou pelas ruas da cidade
Para, enfim, focar-se
Nos meus olhos atentos.
-s-
Borboleta sem rumo,
Inquieta, foco de sol.
Não é leve nem é pluma.
Leve é o paquiderme
Estacionado no próprio sono.
-t-
Decalquei meu gesto no gesso.
Mas, côncavo,
Ele perdeu o sentido.
O vazio tem que contornar
O gesto.
-t-1
Aos gestos barulhentos
O olhar surdo não capta.
-t-2
O olhar pode ser um gesto?
Se pode deve ser como um peixe
Que gesticula no próprio nado
Dentro do aquário.
-t-3
Enquanto procurei pelo gesto perfeito
Ele não ocorreu
Quando o esqueci e não o pretendi,
Ele surgiu do meio do meu corpo.
-u-
Depressivo por tanto pensar
Deixo, enfim, que o meu olhar
Percorra círculos
Como os ponteiros de um relógio.
Em algum ponto ele encontra
A hora da luz e pára.
-v-
Uma caixa de fósforos
Tão concretamente caixa-de-fósforos
Tão percebida como-caixa-de-fósforos
Mesmo sem estar-para-fósforos
Mesmo não-sonora-caixa-de-fósforos
Caixa-de-fósforos-vazia-de-fósforos.
-w-
Imaginamos a chuva
Assim que o vento úmido
Agita a luz do sol
Com sopros curtos reinterados.
Ela virá musicar esta tarde.
-x-
Não posso mais
Numerar os nichos vazios
Do passado,
Comunicar a presença do futuro
Na foz dos rios.
Não posso mais
Buscar o tempo oculto
Com que os profetas se embriagaram
Não, não mais!
As raízes estão agora acima do solo
E são tão banais…
[Poema composto no verão de 2009 e publicado antes em Cadernos de Arte com o título "Poemas de Fevereiro.]
2 comentários:
meu Zeus, o que é isso?!?
tu és inacreditável! aqui, voei longe... a cada passagem, uma nova descoberta, direção, dimensão... desnorteou-me deliciosamente, esta tua odisséia lírica.
adoro ser abduzida por tuas letras, até azular...
(encafifada: y e z se calará?)
meu Zeus, o que é isso?!?
tu és inacreditável! aqui, voei longe... a cada passagem, uma nova descoberta, direção, dimensão... desnorteou-me deliciosamente, esta tua odisséia lírica.
adoro ser abduzida por tuas letras, até azular...
(encafifada: y e z se calará?)
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