Imagem do cabeçalho: "O Grande Canal de Veneza" (detalhe) de Turner

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

COLEÇÃO PARTICULAR (14)

CALENDÁRIO

Talvez,
Em dia vindouro,
Eu me renda
E queira caminhar
Cabisbaixo
Pelas pedras frias
Em torno das quais
Perfazem-se os ciclos
Rígidos da temporalidade.

Mas, por enquanto,
Ainda me rebelo:
Queria desfazer
A circunferência
Dessa coroa de espinhos
E distendê-la num fio liso
De estrada, aparada
Dos externos marcos
De quilometragem.


Adolph Gottlieb, O Rapto de Perséfone, óleo s/ tela, 1943.

quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

COLEÇÃO PARTICULAR (13)

LENDA

Aquele poeta se descobriu
Imerso na felicidade,
E percebeu que seus poemas
Apenas envernizavam o que na própria vida
Já brilhava por si mesmo.
Não podendo ser infeliz
Nem redundante,
Jogou fora trincha e verniz,
E não mais escreveu:
apenas viveu dali em diante.


Camille Bombois, The White Horse, óleo, 1920

domingo, 19 de fevereiro de 2012

COLEÇÃO PARTICULAR (12)

SHOPPING

Não sei por que você tanto compra.
Minto, sei por que você tanto compra:
Por fé. Fé nas coisas fugidias.

Compra pequenas borboletas
Que adejam longe dos cemitérios.
Compra aqueles bichinhos
Que fogem da mata escura.
Compra peixinhos dourados
Que são lançados para fora do rio.
Compra óculos escuros
Para amortecer a visão do tempo.
Compra vendas lúdicas
Para brincar de cabra-cega com a vida.
Compra pais-nossos e ave-marias
Customizados em forma de sapatos,
Bolsas, roupas e aparelhos eletrônicos.
Compra para poder participar
Da romaria, carregando o turíbulo
Do seu perfume confundível
Pelo deambulatório da igreja profana.
Compra pequenas lascas de cruz-neon
Do capital senhor.
Compra a hóstia frita e o copão de 350 ml de vinho
Na abside-praça de alimentação.
Compra, compra, compra, compra
Indulgências baratas,

Porque, e afinal,
Não há lírios do campo
Nas vitrinas enfeitadas
Com a glória de Salomão.


Sigmar Polke, Measuring Clothes, pintura sobre tela, 1994

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

COLEÇÃO PARTICULAR (11)

AVANÇADA

Tinha nos olhos
Um estribilho de canção
Jocosa,
Arejada,
Lhana.

Isto não consentira
À velhice:
Não se fizera penumbra,
Não baixara as persianas.

Alice Neel, Autorretrato, óleo s/ tela, 1980.

sábado, 11 de fevereiro de 2012

COLEÇÃO PARTICULAR (10)

A TARDE (VISTA DA JANELA)

Seis goiabas
Apodrecem, desterradas,
Sobre telhado de amianto
Seco e sujo.

O sol folheia a ouro
Quinquilharias de metal
Espalhadas pelo quintal
Seco e sujo.

Um beija-flor
Inspeciona, em vão,
Ilhas de verde não-florido.

A sombra rendada de uma árvore
Sobre uma parede amarelo-senil
Devolve a esta a ilusão
De receber tinta fresca.

Uma calça jeans
Pendurada num frouxo varal,
Agita as pernas aflitas e vazias
Como se tivesse pressa de adentrar
Pela noite.

Hans Hartung, Composition T 1973, Óleo s/ tela, 1973

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2012

COLEÇÃO PARTICULAR (9)

EDIÇÂO MANUSCRITA

Com cada carícia, deixo na tua pele
Uma narrativa.
Não sei como teu pergaminho
Comporta tanta grafia indelével.
Bom que eu possa reler
Esse poroso registro
De doces tramas textuais
Sem severa autocrítica.

Tal escrita não é da natureza fugidia
Do prefácio matinal,
Que por mais sol que exiba,
Logo se esbate no entrecho da tarde;
Ou das voláteis assinaturas aéreas
Que as asas firmam no ar;
Nem das traduções apócrifas
Que se rascunham velozes na água.

Ah, mas mistério é saber
Como o invisível se corporifica!
E quão estranho é que saias por aí,
Exibindo alguns episódios
Dessas minhas rapsódias epidérmicas ,
E ninguém os consiga ler.


Stanley Spencer, Double Nude Portrait: The Artist and his Wife, óleo, 1937.