Imagem do cabeçalho: "O Grande Canal de Veneza" (detalhe) de Turner

quinta-feira, 17 de janeiro de 2013

ABECEDÁRIO (l)



“L”, DE LONGE


A fria maneira
De dizer adeus:
Rápido degelo.

A tórrida maneira
De dizer adeus:
Fusão de metais.

A convulsa maneira
De dizer adeus:
Ciclone, enxurrada.

A traiçoeira maneira
De dizer adeus:
Um revoar de ferrões.

A pior maneira
De dizer adeus:
Emparedamento.


Anish-Kapoor, Memory, instalação, 2008. Imagem retirada DAQUI.

terça-feira, 15 de janeiro de 2013

ABECEDÁRIO (j)



“J”, DE JUSTIÇA

Não me canso de rever o pôr do sol,
mas estou cansado de ler poemas
que não possa decompor em estrelas.

Não cansa o firmamento que teu corpo é,
mas estou cansado da palavra incorpórea
e sua via contraditória:
exala-se de um organismo carnal e finito
e ainda aspira encarnar um dito imortal.

Não me canso de olhar o céu,
galeria de mutantes esculturas,
mas me fatiga ver a serenidade do papel
conspurcada e ofendida
pelo ruído das rasuras.

Estafam-me as letras, as linhas enfileiradas,
descolaria uma com que enforcar o poema
no limbo do alto da página,
e assistiria o vento pendular das horas
balançar sua lírica ossada.


Christian Boltanski, Théâtre d'ombres, instalação, 1984. Daqui.



sexta-feira, 11 de janeiro de 2013

ABECEDÁRIO (i)



“I”, DE IR

Confesso: já não me iludo
que a palavra desviada
de seu leito banal
irá dessedentar aquele sítio
árido da vida.

Aquele sítio que não é cercado
porque cresce, cresce ferida.

Tolice supor que a cal
adensará o muro;
que as folhas farão a árvore
levitar;
que o vinho tornará menos frágil
o cálice.

A sorte arbitrária divide
as sílabas da palavra vida,
e não entendo o fragmento final:
-ida.


Anselm Kiefer, The Book, téc. mista, início da década de 80.

 ,

terça-feira, 1 de janeiro de 2013

ABECEDÁRIO (h)



“H”, DE HORA


Neste ponto, há uma reversão
Poética:
A borboleta, de súbito,
Aprende a tecer um casulo
E nele se interna.
O que quer que tenha visto
Na sua vida aérea, logo
Hiberna.

O casulo se rompe e liberta
Uma lagarta
Apta para amar coisas pequenas,
Terrenas,

Galgar o caminho desconhecido
Nos galhos das árvores
- Onde se prendem retalhos do céu,
Cenário plano
E raso –

E ali devora ao acaso as folhas
Com sabor de pergaminho,
Nelas desenhando rendas
Com fendas lidas ao tato
De todo raio solar.


E sequer relembra o dom do vôo
Quando a folha de que se alimenta
Aparenta ser balsa que plana
Sobre as ondas de ar.


Anselm Kiefer, Glaube, Hoffnung, Liebe, técnica mista, 1986.