Imagem do cabeçalho: "O Grande Canal de Veneza" (detalhe) de Turner

quinta-feira, 23 de maio de 2013

ABECEDÁRIO (s)



“S”, DE SANIDADE

Tal como Hölderlin-Scardanelli
Ou Vincent em Saint-Rémy,
Tenho apenas uma janela,
Depois que enlouqueci:
Meus olhos são filtros outonais
Que igualam as estações:
Resta-me apenas afiar os ouvidos,
Quem sabe não ouço ruídos
Originais.

Entretanto, à meia-distância
Vejo o que parecem anjos
De tranças
Empoleirados no muro.
Eles dizem:
Somos suas idéias, e pousamos
Em tempos distintos,
E não voamos em bando rumo
Ao futuro.

Quando o dia já escurece
Remanesce na relva do jardim
Um estreito trecho iluminado,
Retangular, plana cama de luz
Em que algum dia hei de deitar,
Liberto por compensatório
Bônus de tempo,
Para desfazer a ortogonalidade
Terapêutica da loucura
Em 360 graus de firmamento.


 
Gerhard Richter, Sem Título, óleo sobre fotografia, 1994


sábado, 11 de maio de 2013

ABECEDÁRIO (r)



“R”, DE RUMO

Talvez o tempo tenha absorvido
Todos os matizes mentais
Neste descampado de álgida brancura,

Ou talvez eu esteja um cisco de mármore
À deriva na esclerótica de um olho imenso
Sem conseguir me aproximar da íris.

Talvez eu tenha me feito o avesso
De alguma pálida palavra
Pousada no alvor da folha de papel.

Talvez a anemia absoluta
Tenha acometido a minha imaginação
Num dos tantos sangramentos verbais,
E eu esteja restos e despojos mortais
Num subterrâneo descolorido.

Mas talvez as cores e as formas
Venham descendo em avalancha
E eu espere por elas no sopé
De uma montanha nevada.


Anselm Kiefer, Ich halte alle Indien in meiner Hand, guache e lápis sobre foto, 1995. DAQUI