Imagem do cabeçalho: "O Grande Canal de Veneza" (detalhe) de Turner

sábado, 31 de março de 2012

COLEÇÃO PARTICULAR (26)

TOPOLOGIA

Sempre olho
O espaço vazio entre os objetos
Como se esperasse dele alguma desestabilização,
Tremor que derruísse as colunas
De algum templo mental,
Enxurrada que removesse os pilares
De uma ponte imaginária.

A garrafa térmica,
O açucareiro,
A xícara,
O pires e a colher
São resistentes,
E em nenhum momento a toalha branca
Torna-se positiva nuvem
Erguida sobre eles:
Aqui estão absolutamente eles mesmos
Sem mim,
Pedras na Necrópole de Gizé,
Satisfeitos de nada aguardar,
Estoica posição.

E que tolice dizer
Que a xícara espera o açúcar e o café!
Eles não têm fé em mim
Como se fosse eu o seu deus.

Robert Rauschenberg, Card Bird VI, colagem, 1971.

quinta-feira, 29 de março de 2012

COLEÇÃO PARTICULAR (25)

FREQUÊNCIA

O pêndulo serve,
O pêndulo serve
Para marcar o tempo,
E para marcar o andar
Da música
Mesmo em silêncio.

Mas ainda serve o pêndulo,
Serve o pêndulo
Para encarnar o ímpeto
Do vento
Sobre o fruto no galho,
Sobre a palha nas mãos
Do espantalho,
Sobre o bambuzal,
Sobre a palmeira adolescente.

Presta-se o pêndulo,
Presta-se o pêndulo
Para lembrar
(linha curva no ar)
A criança que voava
Num balanço.

E ainda presta-se o pêndulo,
Presta-se o pêndulo
Para exemplificar,
Mais ou menos,
Meu pensamento
Lá e cá.


Victor Vasarely, Étude de Mouvement, técnica mista s/ tela, 1939.

terça-feira, 27 de março de 2012

COLEÇÃO PARTICULAR (24)

ALTITUDE

Que pródigo o esquecimento,
Milhares de fardos
Já lançados
Para fora
Do
Cesto
Do
Balão
!

Para onde foi tanto tempo
Nessa ampulheta aberta?
Forma imensa duna
De sacos de areia
Cujo cume quase toca
Este ponto de leveza
Em que me encontro.


Georgia O'Keeffe,  Sky Above Clouds II, óleo s/ tela, 1963.

sexta-feira, 23 de março de 2012

COLEÇÃO PARTICULAR (23)

NINFA SERIA.

Seus cabelos iludem os colibris.

Seus cílios fazem cócegas
No dorso dos peixes de um secreto lago.

Seus olhos têm a cor das castanhas
Flagradas na grama por focos de luar.

Um arroio espumante de luz se inicia
Na fenda entre seus lábios.

Sob seu queixo não há inverno.

Nascem flores em suas axilas.

Nos seus seios se ordenha
Sumo de pétalas róseas maceradas.

Seus dedos se enlaçam aos do vento
Para tocar a sineta dos frutos maduros.

Em suas unhas polidas submersas
As algas se miram
Enquanto na corrente se penteiam.

Seus pés plantam sons de folhas caindo.

Morde-se uma fruta inédita
Em seus tornozelos.

Por trás de seus joelhos
Um nicho para paisagens virgens.

Nenhum nevoeiro se expande
À altura das suas coxas.

Entre suas virilhas, entre suas virilhas
Clareira orvalhada.

Brancusi, La Muse, mármore, 1912.

quarta-feira, 21 de março de 2012

COLEÇÃO PARTICULAR (22)

PARLA, POEMA!

Será como trabalho de marchetaria.
Mas não usarás madeira:
Cortar longitudinais fatias
De sensações e idéias,
E colá-las, alternadas, umas às outras.

Em seguida,
Com ouvidos de escultor,
Imagina a figura jacente
No interior desse bloco:
Ainda não esculpida, ela já fala!


Gilbert and George, Postcard Sculpture, técnica mista, 1974.

segunda-feira, 19 de março de 2012

COLEÇÃO PARTICULAR (21)

PROCESSAMENTO

Neste quarto,
Cubo encantado
Como todo aquele que tem
Oito cantos internos,
Há trabalho sendo realizado:
Enquanto nos vértices superiores
Aranhas lhes fazem as tranças,
Nos quatros inferiores
Ratos roem as barbas do tempo.


Lucien Freud, Large Interior  W.11 (after Watteau), óleo, 1983.

domingo, 18 de março de 2012

COLEÇÃO PARTICULAR (20)

POEMA DESPRENDIDO

Caí de uma asa de mito,
Livre e esquecido,
Rêmige grisalha
Em espiral descendente:
Acima é mesmo verídico
O céu;
Mas embaixo
O solo é apenas figurado,
Página, papel.


Ives Tanguy,  Extinction des Lumières Inutiles,
óleo, 1923.

sexta-feira, 16 de março de 2012

COLEÇÃO PARTICULAR (19)

HÁ MUITO TEMPO

Abro o quarto dos números
Fechado há décadas:
Um lance de olhos
E recolho todos os dados
Evidentes
Numa panorâmica
Apressada;
Fecho-o novamente:
Desânimo de espanar
Tanta poeira acumulada,
Teias...
E aquele bolor de ressentiment(e)?!


Antoni Tàpies, Cabeça, técnica mista s/ madeira, 1995.

quinta-feira, 15 de março de 2012

COLEÇÃO PARTICULAR (18)

NÃO ABREVIAR

De vez em quando,
À janela,
Décimo andar,
Eu imagino,
Imagino,
Imagino,
Sempre imagino.
Mas não o faria jamais!
Por não ter pressa:
Já caio na vida
Em salto mais demorado:
Dá tempo de ir contando
Os andares,
E acenar para as outras janelas.


Alexander Rodchenko, Escada de Incêndio, fotografia, 1925.

domingo, 11 de março de 2012

COLEÇÃO PARTICULAR (17)

EXTRA-ESTUFA

São flores-cirandas
As que a beleza engendra,
Pétalas coladas
Com cuspe divino,
E as corolas espetadas
Nas hastes coletivas,
Filamentos de argila
Da espécie.

Mas o sol é quentíssimo,
E o vento evaporador:
Descolam-se as pétalas de louça,
Embora remanesça, por pouco,
A renda dos galhos em terracota.


Andy Warhol, Flowers, 1962.

terça-feira, 6 de março de 2012

COLEÇÃO PARTICULAR (16)

FILIAÇÃO

Nossas imagens têm agora
Equivalente nitidez
No mesmo porta-retratos:
A sua ainda está esboçada,
A minha, quase apagada.


Alex Katz, Black Shoes , gravura, 1988.

sexta-feira, 2 de março de 2012

COLEÇÃO PARTICULAR (15)

AO NATURAL

Meu amor,
Estamos aqui livres,
Sozinhos,
Espontâneos,
Heróicos,
Abertos
Para o que der e vier.

Vamos mostrar
Numa fotografia
As nossas partes
Íntimas,
A minha carteira
Fornida
E sua desprevenida
Nécessaire!


Larry Rivers, Bedroom, óleo s/ tela, 1955