Imagem do cabeçalho: "O Grande Canal de Veneza" (detalhe) de Turner

sábado, 30 de abril de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (XIX)

21 - interior com quinquilharia

Tinha um amor profundo
pelo desuso,
cada objeto aposentado
era como um convalescente
de breve doença:

- Vá que ressurja de repente
a saúde da utilidade!

Era tão sério isso que parecia
a incumbência de um Noé:
recolher um exemplar
de cada destroço da sua vida.

E veio, enfim, o dilúvio de si mesmo.
Restou o quarto das tranqueiras,
arca repleta de bugigangas
sobre o monte de sonhos de araque.


Kurt Scwitters, Merz-Column, 1923

sexta-feira, 29 de abril de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (XVIII)

20 – velhice com vaso de flores

As   flores  de  tecido    plastificado
que   ela    insiste   em    conservar
–  como  fênix   que   ressurgissem
de  bimestrais  lavagens  a   seco –
têm  permanência   tão  mais  triste
do   que   o   natural    fenecimento
das           flores           verdadeiras:
Estas  não têm tempo de  acumular
Sobre a beleza urgente das pétalas
A baça  pátina de gordura e poeira.


Suzanne Valadon, Vaso com Flores, 1920

quinta-feira, 28 de abril de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (XVII)

19 – interior de redomas

Não será o teu aquário
feito rio embrionário
ou berço de algum mar:
é bolha d’água exilada
e finita,
em cômodo da tua casa
estrita,
[a tua própria ampola
inscrita
na grande redoma de ar
que no vácuo, sem par,
orbita].

Matisse, Mulher e Peixes, ost, 1921

quarta-feira, 27 de abril de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (XVI)

18 – taxidermia

No aquário
de transparência
abissal,
um oceano absoluto
para os olhos escuros
do peixe ornamental.

Matisse, Peixes Vermelhos, óleo, 1912

terça-feira, 26 de abril de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (XV)

17 – interior com insônia

Quatro paredes saturadas
pelo cheiro de cigarro.

O ar viscoso.

A TV cintilando como uma estrela absurda. Anã?

E a janela aberta para a noite estacionária,
retangular sorriso de uma boca sem dentes.


Francis Bacon, Figura em Movimento, ost

segunda-feira, 25 de abril de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (XIV)

16 – arte

Ninguém nota,
ao fundo da natureza-morta,
a nesga de janela
que descortina o prado
de onde foram colhidos
as flores e os frutos vivos,
ora congelados
no perímetro sem ar
do quadro.

Matisse, Mesa Posta (Harmonia em Vermelho), ost, 1908

sábado, 23 de abril de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (XIII)

15 – apócrifo

Na página outonal do livro,
dita folha de rosto,
hiberna entre caracteres
o poema de inverno
que jamais será composto.

Edwart Collier, óleo sobre tela, 1697 

sexta-feira, 22 de abril de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (XII)

13 – fruteira com anoitecer

No dorso fosco
do mamão,
sol deposto,
casca crepuscular.

Na pele rubra
da maçã polida
uma aura
alva de luar


14 – interior com luminária

A mariposa assombrada
a   tremular   com alarde
ao  redor   da   lâmpada,
recorda-me uma folha seca
querendo retornar à árvore.


Cézanne, Estudo de uma Maçã, aquarela

quinta-feira, 21 de abril de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (XI)


12 – interior com desmedida

Nestas paredes
cabe a saga de Dom Quixote;
cabem nestas paredes
um capitão Acab e seu cachalote.
Nestas paredes cabe
o código de Hamurabi,
A Batalha de Anghiari
e o som de todos os stradivari.

Cabem todas as cantatas de Bach
e A Liberdade Guiando o Povo, de Delacroix.
Nestas paredes
cabem a Fontana di Trevi
e as 36 vistas do monte Fuji, de Hokusai;
cabe o próprio Fuji e sua neve;
cabem o Empire State Building,
o Tom Jones de Henry Fielding
e o Karamazovi de Dostoieviski.

Cabe a Acrópole de Atenas e a Santa Sofia,
e com folga caberia o deserto de Gobi
e todos os campos de trigo de Van Gogh.
Cabem, enfim, todos os retalhos do Google Earth,
e os grafites dos muros de todas as cidades.

Nestas paredes, coisa pouca,
só não cabe a felicidade.

Watteau, Sob a Insígnia de Gersaint, Ost, 1720















Lluis Barba, La Muestra de Gersaint, Watteau, 2009
Imagem retirada de: http://www.lluisbarba.blogspot.com/

quarta-feira, 20 de abril de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (X)

11 – miscelânea

O pássaro arborícola,
de sua gaiola
olha para as flores gêmeas
que, vulgares,
olham para a jarra de louça
que, nobre,
olha para a pêra doce
que, aflita,
olha para a tesoura aberta
que, faminta,
olha para o livro solene
que, autista,
olha para o zênite.

Joan Miró, Nord-Sud, óleo s/ tela, 1917

terça-feira, 19 de abril de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (IX)

10 – interior do interior

Visto de dentro
o dentro ainda
é outro exterior
tal qual a boca
lida pela língua
que não articula
enquanto tateia
a tradução
dos dentes.

Antevisto de fora
o dentro é sempre
suposto cheio
de exterioridades,
boca com recheio
de palavras
forasteiras
em estadia
entre os dentes.
Seria abrigo, fórum
do que estava fora,
tal a alma no corpo
e no relógio a hora.

Vermeer de Delft, O Ateliê, 1667

segunda-feira, 18 de abril de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (VIII)

9 – mesa do café

Na toalha de mesa,
lisa, branca, branca,
são alvas
estampas

(marcas d’água
nesse écran)

as lembranças
da outrora feliz
manhã de amanhã.


Van Gogh, esboço em uma carta de 1888

domingo, 17 de abril de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (VII)

8 – interior com ausência

A cadeira
paciente,
abnegada,
mas alerta,
suporta o vão abstrato
da ausência concreta
que a faz incompleta.


Van Gogh, A Cadeira de Van Gogh, ost, 1888

sexta-feira, 15 de abril de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (VI)

7 – brilho*

A luz benigna
já tão fraca,
ganha vida,
dançando
distraída
sobre o
ríspido
gume
da
f
a
c
a
.


Georges Braque, Le Jour, ost.
















(*) Há uma bela variação do poema, nos comentários,
      feita por Cris de Souza, dê uma olhada.

quinta-feira, 14 de abril de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (V)

6 – interior com estante

Como ex-amigos,
os livros,
com fria
superioridade,
me observam
de sua varanda
ortogonal.

Giuseppe M. Crespi (1665-1747), ost

quarta-feira, 13 de abril de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (IV)

5 – fruteira e relógio

O    relógio,
vigia insubornável
junto   à    fruteira,
cronometra
a   vigência
da doce cor.


Juan Gris, Guitarra e Fruteira Sobre Uma Mesa

terça-feira, 12 de abril de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (III)

4 – interior com cafeína

Na madrugada,
da xícara baça
sorvo   o   café
e    o   absolvo:
ele apenas acompanha
minha crônica ausência
                     de sonhos.


Edward Hopper,  Noctívagos,  ost,  1942

segunda-feira, 11 de abril de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (II)

3 – vanitas

Um            memento,
momento transposto,
o                        fato:
o  crânio  sem   rosto
na     natureza-morta
de    mil    oitocentos
e  oitenta   e  quatro,
já era o  meu, o  seu,
o      nosso      retrato.

Cézanne, Nature Morte au Crane, ost.

domingo, 10 de abril de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA* (I)

1 - interior

Quem o concebeu assim paralelo,
não pensava em transcendência
e nem tinha grande imaginação:

No fundo, quis fazer do teto,
laje, suporte para outro chão:

assim na arquitetura como na religião.


2 – natureza-morta

As laranjas gravitam
ao redor da idéia de
doçura.

As maçãs caem
pejadas de símbolos.

Cézanne, Pommes et Oranges, ost, 1895/1900






















(*) São chamados de Interiores as pinturas de costumes que retratavam o interior 
das casas. Vida Silenciosa (Still Life) é uma outra forma de denominar o tradicional 
gênero de pintura mais conhecido como natureza-morta.

sexta-feira, 8 de abril de 2011

QUINZE PAISAGENS COM SOL, QUINZE COM LUA (30)

Por cima
a lua,
claro acrotério
que guarda
o hemisfério
escuro.

No centro
ultramar
puro
em faixa.

Mais baixa
uma área
viva
a exalar
uma sílaba
antiga:
mar mar mar mar mar.

E unindo
os planos
(verniz
aerosol)
o vento
frio
embriagando
meus cabelos
de arcanos.

Tudo
serena evidência
de paisagem
inequívoca
que remete
à minha ausência.

















Marcantonio

quinta-feira, 7 de abril de 2011

QUINZE PAISAGENS COM SOL, QUINZE COM LUA (29)

Uma confusão de escalas:

         os homens

pequeninos na paisagem,
nós que habitamos Liliput,
e em cada cabeça diminuta
o respiro (input/output)
de todo um cosmo
    e seu sumidouro

           na voragem.













Marcantonio

terça-feira, 5 de abril de 2011

QUINZE PAISAGENS COM SOL, QUINZE COM LUA (28)

Noite de outono,
céu estorvado
de cinza ocreado.

Em algum ponto,
a lua se oculta
fria
em simetria
com a palavra
vaga
que desencontro.

Choveu pouco,
do dilúvio
antevisto,
o necessário
para lustrar
o silêncio fosco.

sexta-feira, 1 de abril de 2011

QUINZE PAISAGENS COM SOL, QUINZE COM LUA (27)

A tarde jamais fora tão branda.
A cidade permanecia distante e
abandonada
como uma teoria nunca demonstrada.
Por que voltar para longe da água
se tudo era enfim tudo o que eu
jamais precisara?
O juízo se me derramara
pelos olhos, pelos ouvidos, pelo nariz,
pela s raízes dos cabelos.
Não era de sentir o vento na face,
ele vinha de dentro, das minhas células
de súbito eólicas.
Não era o meu corpo que flutuava
na lírica piscina retida pelos recifes:
mas o meu pensamento em infinitivo
azular
menos denso do que a água salgada.

Era então o mistério da abdicante arte:
presenciar algo que pudesse ser
simultaneamente
uma leve aquarela de Turner,
um óleo sobre tela de Pancetti,
um conjunto escultórico de Bernini,
um quarteto de cordas opus 127,
um poema de William Blake,

e simplesmente não desejar representá-lo.

Era, enfim, estar diante do oceano
sem imaginar por um segundo sequer
que ele alcança outro continente.

















Marcantonio