Imagem do cabeçalho: "O Grande Canal de Veneza" (detalhe) de Turner

quarta-feira, 19 de outubro de 2016

OBJETOS SUJEITOS AO AFETO (doze poemas breves)



OBJETOS SUJEITOS AO AFETO

1-

Os óculos
ao lado
da caixa de fósforos,
casual epigrama:

ver sempre depende
de algum tipo de chama.

2-

Livro de poesia
e garrafa de vinho:
arranjo dionisíaco,
ethos etílico.

3-

Folhas brancas
para desenho
sob o bloco de notas:
onde larguei a chave
da porta?

4-

Café e açucar
aguardam
o encontro amoroso.

Xícara emborcada,
a alcoviteira.

4-

Um livro fechado: Platão.
Por enquanto, apenas
um sólido geométrico
no mundo das aparências.

Ou potência que aguarda
um ato.

6

O relógio digital de mesa,
objeto mutante:
a cada segundo
novo semblante.

7-

Laranjas,
bananas,
mangas:

o sabor inocente
ainda
detento
sob as cascas.

8-

O cinzeiro: túmulo.
Nenhuma fênix
borralheira.

9-

As roupas
no varal –
olhar é despir
previsões.

10-

Sapatos empoeirados
e hirtos,
exaustos de andar
em círculos.

11-

Caixas velhas,
velhas caixas:
o que fazer com isso?

Jogar o seu oco
(nicho)
no lixo.

12-

Falta fotografia,
no porta-retratos:
esclerótica retangular
sem a íris.E
a menina dos olhos.

 
Giorgio Morandi em seu atelier





quinta-feira, 23 de junho de 2016

Um poema para retomar o Azul Temporário


Após dois anos de silêncio, reinicio o Azul Temporário com um poema sobre o silêncio e o tempo. Procurarei mantê-lo ativo com três postagens semanais, mas nada sistemático, apenas um exercício livre e espontâneo, como sempre foi. Sigamos daqui.


O ÚNICO SOM

Além dos limites internos da casa
tudo são pálpebras se fechando.
O silêncio é o saber que as coisas
agora não excedem o ser coisa
e assim permaneceriam não fosse
o mediúnico relógio de parede
incorporar o som dos cascos do tempo,
aquele cavalo sem cor trotando
nas metálicas margens

de um caudaloso rio de imagens.


Cézanne, O relógio negro, o/s/t - 1869.