Imagem do cabeçalho: "O Grande Canal de Veneza" (detalhe) de Turner

sábado, 20 de julho de 2013

ABECEDÁRIO (v)



“V”, DE VERBAL

Passeio mentalmente
(é sempre apressadamente)
Pelos três reinos da natureza
Em busca de uma metáfora
Para o teu corpo:

Extraí amostra de vegetal,
Planta que dá única flor,
Corola profunda sanguínea,
Pétalas ajustáveis, carnívoras.

(Não está bem.)

De outro reino capturei
Ser alado,
Asa que salta nua,
Rodeia dentro da noite
E retorna pouso-cópula.

(Não está bem,
Esse ciclo
Inevitável de ressurreições
Imagéticas.)

Do mineral
Reino do qual se engendram
As coisas-coisas
Quase nada me serve:

Mas ocorreu de ver seu corpo
Um cântaro todo face interna
Que me recebe, banho de caulim.

Nunca estará bem: as metáforas
Estão sempre por fora,
Quais cromos colados sobre
Fundo mistério.Ou roupa.

Teu corpo repele substituição.
Ou representação.


Anselm Kiefer, da série Women of Antiquity, 2004.
 


sábado, 13 de julho de 2013

ABECEDÁRIO (u)



“U”, DE UNGUELADO

Reparo nas tuas unhas
Sujas,
Essas lâminas,
Essas dez enxadas minúsculas,
Esses raspadores.

E algo se arrancou dessa parede
Para a tatuagem trêmula
Dessas dez gretas,
Dez falhas,
Dez condutos de angústia.

A cal recolhida
Entre as unhas em contínua partida
E a orla das digitais
É suficiente para acelerar a decomposição
Do seu coração-minuendo.


Antoni Tàpies, Lectura, téc. mista, 1998.


sábado, 6 de julho de 2013

ABECEDÁRIO (t)



“T”, DE TÊMPERA

As cariátides que sustentam
A arquitrave noturna -
Anteparo do sol - me apavoram:
Não são as lisas colunas por onde correm
Filetes da luz morna do sono,
São instáveis, postadas viúvas
Do serralho de Cronos.

Elas têm caras negativas
De estrelas escuras,
Olhos vedados com betume
Que mesmo vazados
Não cuspiriam lume.
Seus dentes são de basalto:
Frontispício de gargalhadas sinistras.
Os cabelos, um leque farto de verrumas
Espetadas para o alto.

Elas sabem que o sol nunca é deposto,
E avançam para o portal da minha insônia,
Desertando de seus postos:
E a laje do firmamento fica a flutuar a custo...
Pavor! Não posso dormir sabendo
Que a estabilidade do universo
Depende agora do socorro dos meus músculos.


Anselm Kiefer, Jericho