Imagem do cabeçalho: "O Grande Canal de Veneza" (detalhe) de Turner

sábado, 31 de dezembro de 2011

TEMPO DE EXPOSIÇÃO (71)

CHIAROSCURO

Não tenho memória de haver chorado,
Uma vez que fosse,
Com o rosto coberto de sol.

Chora-se sempre à tardinha
Ou à noite, pois
Memória de choro demanda quebranto
De penumbra:

A vela da dor apagou-se,
Foi o sopro nebuloso do tempo;
As lágrimas se tornaram opacas,
Alguns filetes de cera dura sobre a face,
Aquele antigo e frio castiçal de mármore.


Man Ray, Tears, 1926

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

TEMPO DE EXPOSIÇÃO (70)

A VIDA QUE SE POUPA

Há uma luz metafísica
Que frauda a pele da fruta
Sobre a mesa:
Já não é um cadáver
Afastado de sua árvore?

Mas esta urgência
De apetite necrófago
Vê a fruta exuberante, muito viva.

Serei um tipo de verme
Precipitado
Que a devora de imediato
Acima da terra?

Recuso o que ela oculta,
O caroço,
E o cuspo ao solo:
É osso-nave
Que nenhum verme roerá,
Pois ele escapará, aéreo.

Misericordiosa, a fome
Poupa da fruta apenas
Aquele cuspido dejeto,
Justo o que dela não é funéreo
E, projeto, viverá.


Irving Penn, Natureza-morta com Melancia, 1947.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

TEMPO DE EXPOSIÇÃO (69)

O QUE PODE FALAR MAL DE SI MESMO

Melhor que falar do canto dos pássaros
É falar do ser que o ouve e inveja.
Melhor que falar do cão que ladra
É falar do ser que se ajoelha e o afaga.
Melhor que falar da flor rasteira
É falar do ser que a eleva e a cheira.
Melhor que falar da cordilheira que se afasta
É falar do ser que a aproxima e abraça.
Melhor que falar da árvore frondosa
É falar do ser que lhe faz a sombra generosa.
Melhor que falar do fruto que a terra cobiça
É falar do ser que com a boca falante o adocica.
Melhor que falar da terra virgem e indiferente
É falar do ser que a deflora e a torna continente.
Melhor que falar da natureza selvagem
É falar do ser que nela cria uma margem.
Melhor que falar de qualquer ser sem fala
É falar do ser que lhe empresta a palavra
E sopra no barro um nome,
Esse ventríloquo que põe o mundo ao colo,
O Homem.


Yousuf Karsh, Marshal McLuhan at the Royal Ontário
Museum, 1974.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

TEMPO DE EXPOSIÇÃO (68)

A BORDO

No barco singrando
A existência, oceano total.

Pelas manhãs o mesmo brado:
- Mais mar à vista do convés-quintal!

E os remos, movidos pelo sol,
Misturam naturalmente
O ar na água oscilante,
Onde brilha um convite redundante,
A ser devidamente recusado
Pela seca indiferença
Do explorador que já navega
Com naufrágio penhorado.


José Boldt, Barco 2, Tróia, 2006. (Daqui)

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

TEMPO DE EXPOSIÇÃO (67)

DESPRENDIMENTO

O medo também cede
Ao avanço do outono,
E
Cai folha
Por folha
Da árvore
Da vida.


quarta-feira, 7 de dezembro de 2011

TEMPO DE EXPOSIÇÃO (66)

ROMANCE

Eu escrevo cartas de amor à vida.
São como capítulos saltados
De um romance epistolar
Onde faço a figura de um sedutor
E assino: “Eternamente teu”.

Mas não estou seguro,
Ela jamais me respondeu.

Uso um artifício de imaginação:
Aplaco o orgulho ferido
De não ver correspondido
Este amor incondicional,
Supondo o extravio das respostas,
Enquanto lhe remeto, sentimental,
Novos testemunhos de paixão,
Ocultando nas entrelinhas
O medo do rompimento unilateral.


Tina Modoti,  Julio Antonio Mella's Typewriter, 1928

segunda-feira, 5 de dezembro de 2011

TEMPO DE EXPOSIÇÃO (65)

DESESPERANÇA

O olhar sozinho
Se choca
Contra a imensa
Muralha
E cai esfacelado
Em farpas
De esqueletos
De passarinhos.

Sebastião Salgado

sábado, 3 de dezembro de 2011

TEMPO DE EXPOSIÇÃO (64)

VAZADURA

À palavra olho
Cerrada
Drástica
Cílios pontos
Cirúrgicos
Vírgulas trançadas
Aponho um dreno
Parênteses aberto
Para a palavra
Interdita
Lágrimas.


Cartier-Bresson, Sleeping Woman, 1934

sexta-feira, 2 de dezembro de 2011

TEMPO DE EXPOSIÇÃO (63)

MARCADORES

A carne é meu relógio sem dígitos
Com um inquietante tique-taque.
Ou meu calendário sensível
E impiedoso,
Grafado por vasos, nervos e vícios,
E onde os feriados e as efemérides
Distantes
Já não se marcam em vermelho
Com o tempo sanguíneo.

Posso fugir à soma abstrata dos anos,
Mas não aos somáticos sinais de subtração.


Irving Penn, Street  Findings, 1999