Imagem do cabeçalho: "O Grande Canal de Veneza" (detalhe) de Turner

domingo, 31 de julho de 2011

PROVAS DO ARTISTA (37)

MALDITA COMÉDIA

Não creio que me dês a mão, ó
Autodenominado poeta maldito!
Tenho subvisão, é pouco o que enxergo;
Como iria guiar-te? Seria grande engano:
A minha aparente lucidez busca abismos,
E a tua suposta loucura não vai ao fundo,
                             Ama o primeiro plano.


William Blake, Dante e Virgílio à Porta do Inferno

quinta-feira, 28 de julho de 2011

PROVAS DO ARTISTA (36)

VARIAÇÕES EM TORNO DA LUA

    Dedicado à poeta Cris de Souza

Uma flauta impressionista.
Debussy? Ravel?
E a lua, odalisca lânguida,
Dança no céu.

B

Lua, globo sem pupila,
Olho sem retina,
Não nos julgas, nada vês
Da humana insensatez.

C

O céu cessa de chorar
Cai a última lágrima
Soberana:
A lua nacarada
Sobre a poça urbana.

D

A janela se orna:
A névoa, cortina;
A lua, borla.

E

Nave lenta,
Nunca zarpa
Nem recolhe
O velame:
Vela, atenta,
O hemisfério
Que dorme.

F

Pequena reserva de sol
Que atenua o medo
Da noite eterna
- O dia apenas hiberna! -
Solidária lua, talismã
De fé na luz da manhã.


Renina Katz,  litografia sem título, 1997 - Imagem daqui

terça-feira, 26 de julho de 2011

PROVAS DO ARTISTA (35)

ÁUDIO

Do sobressalto ao riso
Oscila o meu humor:
No íntimo amplificador,
Com minha voz em off
Em tom de Boris Karloff,
Estou me narrando
Um filme B de terror.

Goya, gravura da série  Los Disparates, água-forte, 1819-1823

domingo, 24 de julho de 2011

PROVAS DO ARTISTA (34)

TRISTE FIGURA

Há momentos de delírio, enfim,
Quando suponho ter na mão um espadim,
Leve como a navalha de Occam,
Com que eu possa estripar as esfinges:

- Proponde enigmas! Vinde!

Na outra mão, égide lustrosa
Para devolver os raios das estrelas
À origem nebulosa:

- Vai de retro, ilusão!

Monto um cavalo magérrimo,
Sem antolhos, esfalfado,
E que jamais foi ferrado,
Seus cascos se gastam na rocha bruta:

- Escuta: precisamos ter os pés no chão!

E um fiel escudeiro. Escudeiro? Escudeiro!

- Cadê o meu escudeiro, ó solidão?


Salvador Dali, Dom Quixote, litografia 

sexta-feira, 22 de julho de 2011

PROVAS DO ARTISTA (33)

BESTIÁRIO

Será apenas
Busca mítica
Esta ânsia neológica
Por uma palavra
Paleolítica?

Gilvan Samico, O Sagrado, xilogravura, 1997


















Mais sobre Gilvan Samico: Aqui

quinta-feira, 21 de julho de 2011

PROVAS DO ARTISTA (32)

CHARQUE

   Para Luis Eurico de Melo Neto

Ainda poderei usar aquelas palavras?
As mesmas que ontem formavam corpos
De ruminantes bovinos
Em currais de satisfeita esperança?

Eram lerdas, mas gratas, anchas,
Como se o sentido do mundo
Se lhes escorregasse, suave massa,
Pela garganta.

No entanto, foram sangradas, escalpeladas,
Cortadas em postas finas
Para secas mantas:
Assim expostas, conservavam por instantes
Um rubor úmido,
Embebidas, em parte, no próprio sumo
Extraído em meio à tradicional carnificina.

De si mesmas lavadas,
Jazem agora sob ávidas camadas de sal,
O sal em cristais, sedento e frio vampiro.

Ainda poderei usar estas palavras
Em decomposição adiada?

Danúbio Gonçalves, Xarqueada, Xilogravura, 1952
















Sobre Danúbio Gonçalves: Aqui ou Aqui

terça-feira, 19 de julho de 2011

PROVAS DO ARTISTA (31)

NO AR

Ainda não vejo a beira do mar,
Mas a maresia vem me saudar
Com suas asas odorantes, altas.
Estar em casa... É de marejar:
Ondas antigas
Já quebram nas minhas pálpebras.

Carlos Cruz-Diez, Composição, gravura, (imagem Daqui)



Sobre Cruz-Diez: http://www.cruz-diezfoundation.org/en/foundation.html

segunda-feira, 18 de julho de 2011

PROVAS DO ARTISTA (30)

PANTEÍSTA

Um vôo interceptado:
Tenho as costas presas
Por um visgo azul-celeste.
Não me debato.

E o sol se aproxima,
Estrela de tantas patas,
Pelos fios a leste;
Corre por eles, ouro líquido,
Ígneo sangue
Irrigando a teia.

Em breve incandescerei
Neste pouso forçado
Acima de Géia.

Fraçois Morellet, serigrafia, 1971

sexta-feira, 15 de julho de 2011

PROVAS DO ARTISTA (29)

IMPOSSÍVEL

Uma palavra ofensiva
Leveda em minha língua;
Logo a envolvem
Fios ressentidos,
Num casulo que eu urdo.
Aguardo a metamorfose
Da ríspida pupa
Em alada e leve canção;
Mas isso não acontece,
E a crisálida se enrijece,
Resina viscosa a encobre,
Até que mudo me torne:

Jamais serei poeta
Generoso e nobre.


Marcelo Grassmann, Guerreiro, gravura em metal. (Daqui)

quinta-feira, 14 de julho de 2011

PROVAS DO ARTISTA (28)

METALURGIA POÉTICA

Com estes dedos frios
Tampo os ouvidos,
Mas ainda ouço ruídos
Persistentes
De forja trabalhando
Dentro do meu crânio:

É o claudicante Vulcano
E sua arte dos metais,
Moldando armaduras fictícias
Para meus medos reais.

Peter Brueghel, o Velho, O Alquimista, gravura, 1558

quarta-feira, 13 de julho de 2011

PROVAS DO ARTISTA (27)

PERDA

Dizem haver duas trilhas
Para o que deve ser dito.
Mas por uma ou por outra
Perder-se-á algo estrito.
Ou serão duas ilhas
À escolha do náufrago?

Duas praias vãs, quiçá,
Às quais o escrito vai dar
Em farrapos e exausto.


Maria Bonomi, Mar dos Anjos, xilogravura, 1975 (Daqui)












Site oficial de Maria Bonomi: http://www.mariabonomi.com.br/indexf.htm

segunda-feira, 11 de julho de 2011

PROVAS DO ARTISTA (26)

SONETO

A noite antevista ainda na aurora,
Ressonam as ilusões, esses astros,
E sob o céu total azul-emplastro
Engasta-se turvo amanhã no agora.

Um dia não é suficiente e vasto:
O que quer que sinta pouco vigora,
Nada mais do que rápido antepasto
Na dieta crua que o tempo elabora.

Como cevar-me de planos seguros?
Meu cético apetite não se ilude
E considera a vida um fast food,

Pois num banquete-sem-data futuro
Eu não serei conviva ou convidado,
Senão o prato vivo a ser devorado.

Oswaldo Goeldi, Peixe e Gato, xilogravura, 1927

quinta-feira, 7 de julho de 2011

PROVAS DO ARTISTA (25)

ANTI-PACTO

Se eu pudesse trocar de vez e a sério
Este anseio fáustico
Por qualquer caminho menos etéreo,
Pavimento asfáltico,
Sem querença ou crença no mistério!

Faria o meu cérebro um voto afásico
De ignorância monacal;
E teria o meu coração uma nascente
De sentimento mineral:
Córrego terra terra, e entre as pedras,
Fluindo incolor e banal
Para o território arenoso e absorvente
Do esquecimento total.

Evandro C. Jardim, Sem título, gravura em metal

quarta-feira, 6 de julho de 2011

PROVAS DO ARTISTA (24)

LOCAL

Invoco, invoco, invoco
E nada trago a minha presença.
Não vem a ampla campina
Com o pequeno trissílabo
Que a denomina,
Nem me aparece a montanha colossal
Por desmedida que seja a fé verbal;
Sequer me alcança a via aberta
Desta imensa cidade.

As palavras emitidas
Sempre acodem vazias
A minha domesticidade.


Barbara Krueger, Will, foto-offset litografia e serigrafia, 1985.

terça-feira, 5 de julho de 2011

PROVAS DO ARTISTA (23)

MENOS

Comprimindo,
Segador,
Ele está vindo:
O tempo-foice.

Renina Katz, O Tempo e o Vento, litogravura
1994

domingo, 3 de julho de 2011

PROVAS DO ARTISTA (22)

FARÁ DIFERENÇA?

O ar que te envolve
Parece te adornar:
Térmica aura solar.

Tu mesma a emites
Ou a ti se transmite
Este ardor de te amar?


Tomie Ohtake, Sol, gravura, 



















Instituto Tomie Ohtake: AQUI

sexta-feira, 1 de julho de 2011

PROVAS DO ARTISTA (21)

DE LONGE

Manhã ensolarada.
Restos de fogueira junina
Subsistem rente à calçada
Como se fumegassem –
Atávica fragrância –
Desde uma noite feliz
Da minha infância.

Alfredo Volpi, Mastro e Bandeirolas, serigrafia.















Sobre Volpi:  AQUI