Imagem do cabeçalho: "O Grande Canal de Veneza" (detalhe) de Turner

quinta-feira, 24 de abril de 2014

POEMAS EVISCERADOS (15)



ADÁGIO

Permaneceram os dedos,
Frios, sem as luvas de carne.
Mais delgados,
Menos anelares,
Anulados, sem expressão
De anelo.

Foram-se os anéis
Já mais largos,
Inúteis ornatos áureos
Em ossos lustrados,
Outrora dígitos,
Agora fragmentos
Para ábaco.


terça-feira, 8 de abril de 2014

POEMAS EVISCERADOS (14)



NÚMEROS SEM MEMÓRIA

Enfim encontra-se um conjunto
Numérico,
Não mais que despojos,
Desprendida pele seca
Das coisas concretas,
Pulmão que não traga mais ar
Ou pupilas áridas sem o sumo
Da luz.

Não mais dizer mil fios de cabelo,
Ou sete pássaros em bando,
Ou seis pães franceses,
Ou duas décadas de amor,
Ou décimo terceiro salário,
Ou três quilômetros para alcançar
A fronteira,
Ou meia dúzia de laranjas,
Nenhuma medida de carne e osso:
Dedos, braços, pés ou côvados...

Apenas os números sem carga,
Incorpóreos, não mais que sombras
Como as almas do Hades.


sexta-feira, 21 de março de 2014

POEMAS EVISCERADOS (13)



PNEUMOGRAFIA

No momento a necropsia
Busca revelar
A origem da tua ironia,
O ponto inflamado
De onde se irradiou
Entre as suas ideias.

Deixemos de lado, a princípio,
O abdômen murcho,
As asas hirtas do crânio pousado:
Comecemos pelos sedimentos
Do ar desencantado
Que passou pela tua traqueia.


sábado, 18 de janeiro de 2014

POEMAS EVISCERADOS (12)



RADIAÇÕES

Legistas doutos, às vezes,
Também deliramos,
Como quando buscamos
O oculto prisma que decompõe
A ausência de luz
Das furnas inóspitas do luto:

Como germinam essas cores feéricas,
Florilégios cromáticos,
Espectros irisados que recobrem
A tediosa monocromia da carne
E os tons rebaixados das vísceras exangues?

Serão como auroras boreais
Nas fronteiras entre o post-mortem
E os nossos olhos clínicos?


domingo, 12 de janeiro de 2014

POEMAS EVISCERADOS (11)



FUNÇÃO

Como se transmitia ânimo
Àquele mecanismo pesado?
Não mais importavam
Para o sujeito
Especulações, causa e efeito:
A noite já se fechara,
As chaves jogadas para fora
Do encéfalo frio,
Esse além onde o resto
Seguia inconcluso circo:

A morte era uma jaula aberta,
A vida, um leão rugindo no pátio
De ladrilhos
Enquanto o domador dormia
Com a acrobata na cama elástica.


sábado, 4 de janeiro de 2014

POEMAS EVISCERADOS (10)



PURGAÇÃO

Então,
Agulhas começaram a apontar
Na pele,
Agudas, mas frágeis,
Feitas de fino e translúcido vidro:

O organismo começara a expulsar
Todas as crenças no invisível.