Imagem do cabeçalho: "O Grande Canal de Veneza" (detalhe) de Turner

terça-feira, 19 de junho de 2012

FACETAS (16)



De repente,
Os teus lábios
São limas.
Não limas da Pérsia,
Nem gomos
De laranja lima,
Repetindo doce
Rima,
Mas lima, ferramenta
De desgastar metais,
De retirar aparas,
Ou remover a pátina
Rara
Das palavras
Para acomodá-las
Em encaixes,
Esquadrias banais.


Foto: Marcantonio



quinta-feira, 14 de junho de 2012

FACETAS (15)


Eis o dia
Sorrindo aurora,
Os dentes tão perfeitos
Que desconfio postiços.

Às doze horas
Sorri discreto,
Na arcada duas falhas:
Faltam-lhe os caninos.

À tardinha
Nem sorri,
Mas canta um hino
E entrevejo, nos agudos,
Um vazio escuro
Na boca,
E os músculos flácidos
Da face amarela
O denunciam:
Um dia banguela.

À noite, some.
Correu com pressa
Ao protético:
Amanhã exibirá
Orgulhoso
O restauro estético.


Marcantonio

terça-feira, 12 de junho de 2012

FACETAS (14)


Meus pés
São iletrados,
Analfabetos
Dos seus rastros,
Não se dão conta
Das valas
Que, por atrito,
Criam no mármore.

Minhas mãos
São burras e simplórias,
Nada furtam do ar,
Nem aceitam em suas palmas
Essas folhas de água,
Esses frutos de fogo.

Meu tronco
Não subsidia
Nenhuma copa:
Meu crânio
Tão aéreo agora,
Tão narcotizado
De nuvens,
Sem olhos,
Sem orelhas,
Sem nariz.
Dentes sim,
Trincados para a memória.


Foto: Marcantonio

domingo, 10 de junho de 2012

FACETAS (13)


Sonhei com uma ampulheta
Pela qual escorria algum grão
Comestível.
Em vez de areia,
Talvez arroz,
Trigo
Ou aveia.
Que visão apetecível!
Nutrir-se do tempo
Era então possível.


Marcantonio

sexta-feira, 8 de junho de 2012

FACETAS (12)


Um poema-gravura,
Impressões minhas
Da vida que passa:
O papel pressionado
Sobre meu hálito
Que entinta
Uma matriz-vidraça.


Foto: Marcantonio

terça-feira, 5 de junho de 2012

FACETAS (11)


Como e para que julgar o mundo
Se é imenso o número de coisas
Que não sei fazer?

Que sei dos cálculos de um físico?
Não sei fazer um corte ao coração
Como faz o cirurgião.
Nem sei cobrir vãos feito o engenheiro.
Não sei do padeiro o ofício do pão.
Nada sei da paciência da florista
Ou de um operário.
Que sei da faina de um geógrafo?
Não sei fazer o trabalho de obstetra,
Não sei do método do carpinteiro,

E não sei fazer o serviço enciclopédico
Do coveiro.


Foto: Marcantonio