Imagem do cabeçalho: "O Grande Canal de Veneza" (detalhe) de Turner

domingo, 31 de março de 2013

ABECEDÁRIO (p)



“P”, DE PLACIDEZ


Não posso contribuir para a enorme antologia
De poemas sobre o espelho,
Não há o que especular:
Essa imagem que não diverge de mim
Na lâmina fria
É apenas marionete servil
Que movo com auxílio de fios de luz.
E nem há como supor que seja eu o reflexo aprisionado
E ela o animal racional que me observa
Dum extremo quadrangular de outro mundo:
Tenho alento que a embaça.

E me atenho cegamente às leis da ótica
Que fui capaz de decorar na escola.

Além do mais, os reflexos da toalha de cor sanguínea
Pendida do toalheiro (me lembra um pedaço de carne
Pendurado num gancho de açougue)
E dos objetos de barbearia e higiene
Na pia do banheiro (sobretudo o sabonete já gasto)
Impossibilitam qualquer divagação metafísica.


Anish Kapoor, Cloud Gate, Chicago

terça-feira, 26 de março de 2013

ABECEDÁRIO (o)



“O”, DE OUTRORA

Repare nos sapatos,
Polidos, brilhantes,
De cromo alemão.
Mas beijam o chão.

Repare nos sapatos,
Rotos, baços,
Bagaços sem duração.
E beijam o chão.

Repare nos tênis,
Os que custam poucos níqueis,
Os que valem quinze vezes
Uma boa refeição.
Todos acarinham
E beijam o chão.

Repare nas sandálias,
As de borracha,
Ou aquelas cujas tiras
Sobem pelos tornozelos,
Ou as de couro, sem zelo
Na produção.
Todas feitas para o beija-chão,

O mesmo chão que enterrará
Os pés
Após tantos passos passados.

Por isso é justo que haja
Um museu dos calçados.


Anselm Kiefer, Die Woge, téc. mista, 1995. (Daqui)


terça-feira, 19 de março de 2013

ABECEDÁRIO (n)



“N”, DE NADIR

Eu cresço pelo que absorvo,
O sorvo de estrelas a irrigar
A feérica madrugada,
De onde se seguirá a aspiração
Pela manhã tão decidida
A não olhar para trás
E a recusar a via de retorno
Ao Hades.

Para além da cabeça do dia,
Os signos dormentes no ventre da tarde,
O pensamento dobrado ao meio
Por onde o sangue pouco flui
E o conseqüente formigamento
De luzes ocultas que logo se acenderão.

Um pouco mais, e a transfusão
Sanguínea do crepúsculo
Na veia vazante do vazio...

Mas eis no céu outro jorro
De linfa azul-marinho
Com grânulos luminosos nela infusos.

É assim que aumento de tamanho:
Os olhos descerrados,
Incompetentes para chorar,
E os poros em estado dilatado de alerta.


Julian Schnabel, Sem título, técnica mista, 2011. (Daqui)