Imagem do cabeçalho: "O Grande Canal de Veneza" (detalhe) de Turner

quinta-feira, 31 de março de 2011

QUINZE PAISAGENS COM SOL, QUINZE COM LUA (26)

Talvez eu devesse me desdizer,
reconsiderar.

Supunha que toda geometria
sucumbisse na noite,
que todos os ângulos
eram por ela engolidos;
que não houvesse palavras
especificamente noturnas,
que as sílabas nasceram sob o sol
para formar um plâncton
nesse oceano de luz
que demanda oxigênio;
que a lua seria apêndice solar.

Mas, e “feérico”? É palavra noturna!
Só há no hemisfério das sombras,
e sem se opor ao dia.

E “onírico”?

Deixarei então de identificar a noite
à madrasta má dos sonhos órfãos do dia.
Ver menos talvez seja a condição natural
do sonhar.

















Marcantonio

quarta-feira, 30 de março de 2011

QUINZE PAISAGENS COM SOL, QUINZE COM LUA (25)

Ensolaradas ou não,
noturnas ou mesmo
vistas na penumbra,
algumas paisagens
nunca serão descritas.

Só a extrema solidão,
de relance, as vislumbra
e reporta
em sua língua natimorta.


















Marcantonio

terça-feira, 29 de março de 2011

QUINZE PAISAGENS COM SOL, QUINZE COM LUA (24)

A luz não é a alma da paisagem
pois o sol não lhe circula
prânico
nas ocultas veias
nem lhe inocula
ânimo.

O sol apenas pastoreia
sombras na superfície
para o volume inconstante
de um semblante,
variada efígie.

Mas quando o sol se põe
em simétrico interregno,
e a noite se revela
terreno subjacente,
uma alma se extroverte
impositiva
na paisagem que adormece
paisagem negativa
e não referente:

é a alma compartida
do medo que o homem sente.
















Marcantonio

segunda-feira, 28 de março de 2011

QUINZE PAISAGENS COM SOL, QUINZE COM LUA (23)

No meu jardim
há uma flor remanescente
de cada estação já distante.
Não cuido em aguá-las.
O sol para o qual se voltam
já não brilha.
Mas uma seiva sanguínea
de algum lençol subterrâneo
lhes sobe pela haste
e coagula na corola regenerável
de pétalas que não murcham:
caem como rubis laminados
tornando vítreo e árido o solo.

Já é raro ver nele uma fenda
respirável
por onde floresça um espanto
contemporâneo.














Marcantonio

domingo, 27 de março de 2011

QUINZE PAISAGENS COM SOL, QUINZE COM LUA (22)

O poema
(o meu - que sei do teu?)
não é senão outro
satélite esférico,
tondo teleférico
nas órbitas espiraladas
da noite.

De arrogante cegueira
astronômica,
ignorante da luz
que reflete.














Marcantonio

sábado, 26 de março de 2011

QUINZE PAISAGENS COM SOL, QUINZE COM LUA (21)

Atol frígido
ainda não submerso no azul,
o que faz esse resíduo de lua
no céu da sediça manhã?

Breve remanescer
que me espanta:
analogia esférica
da minha tênue fé.

O sol alto a ignora.


















Marcantonio

sexta-feira, 25 de março de 2011

QUINZE PAISAGENS COM SOL, QUINZE COM LUA (20)

A lua que vejo hoje
parece tão irreal.
Eu a vi surgir da água,
nereida alçada
do oceano,
as pontas das mechas
ainda mergulhadas.

A lua que ora vejo
é a grande exilada
dos poemas
e das canções.

Seria aquela
a que Li Bai
tanto amou?












Marcantonio

quinta-feira, 24 de março de 2011

QUINZE PAISAGENS COM SOL, QUINZE COM LUA (19)

Aqui o horizonte é uma linha tracejada
unindo duas têmporas que não pulsam,
e ele não vela por segredo algum:
é parapeito para o olhar extasiado
com a própria miopia,

porque é daquela falésia que torna esse olhar
alforriado de ter que transladar-se
ao versículo do próximo capítulo.

E como se agrada de espraiar-se
apenas subscrevendo o sol ancião
que satura de óbvio on canvas a campina!

Ah, é tanto sol que não há sol,
mas um flash de magnésio congelado no ar
após espocar.

Aqui não sangraria rio algum
que requeresse um declive:
sobre a laje seca coagularia,
um fio de verniz incolor, indolor,
inodoro.

Também não é de se ver nestas plagas
seres que subvertam as escalas,
como as formigas
e todos aqueles dados a inventar
íntimos sob a superfície: as toupeiras,
as minhocas, os etc. e as reticências.

Acima do nível do solo, igualmente,
nada se sustenta, nem arco vazado
nem tumoração rochosa
nem qualquer menir vegetal;
nenhum gólgota, nenhuma babel
ou qualquer mezanino mental.

Talvez apenas uns seres alados,
símiles do olhar abstêmio e livre
que enfim enlouqueceu
e dança longe das quinas e cercas.

















Marcantonio

quarta-feira, 23 de março de 2011

QUINZE PAISAGENS COM SOL, QUINZE COM LUA (18)

Estava no meu quarto
pensando nas paredes que ocultam
outras paisagens. Cela! Pensei.
E eu seria um monge ilustrador
aprisionado na ausência de referências
externas.

Mas é noite, sei. O relógio o assegura.
E neste fato, há o sortilégio
de já se tornarem as paredes translúcidas
pois vejo a escuridão para além
desta lâmpada. Mas a escuridão oculta
outras paisagens. Nova parede! Pensei.

A minha cela está dentro de outra, sei.

No entanto, detrás da parede da noite
aguarda-me uma paisagem intacta de coisas
amarradas por raios solares, conectadas
por nervos de luz.
Ora, se ela já está lá, também é fixa:
outra parede! Outra cela!
Então não há como escapar
deste lado de dentro:
sou como um Jonas no ventre da paisagem,
pensei.











Marcantonio

terça-feira, 22 de março de 2011

QUINZE PAISAGENS COM SOL, QUINZE COM LUA (17)

Você já vê a flor,
vê a serra distante,
o sol nascer
você já vê.

Falar do que se vê,
em geral,
(como a flor)
seria tautologia?
Aquilo que a poeta
dizia
de ser uma flor
uma flor,
a serra distante
ser a serra distante,
o sol a nascer
ser o sol a nascer.

Falemos, então,
do invisível particular
(ou universal?):
o dia que é o dia
que não mais será
um dia que hoje
é um dia a menos.

Isto é: será
o que você e eu
não veremos.
















Marcantonio

segunda-feira, 21 de março de 2011

QUINZE PAISAGENS COM SOL, QUINZE COM LUA (16)

Da paisagem diurna retiro
o que fazer;
o que vestir;
o que comer;
o que pensar;
e a quem amar.

Então, sobrevém a noite
que cerra sobre mim
as pálpebras
como grande pinça
e me retira da paisagem.


sábado, 19 de março de 2011

QUINZE PAISAGENS COM SOL, QUINZE COM LUA (15)

Não se trata da grande forma,
mas do pormenor.
Não é a árvore, e sim o labirinto
da folha
que está e não está presa a ela.
Não o pássaro, nem mesmo a asa,
porém, a rêmige irisada.
Não se trata do barco ou da vela,
mas da quilha mergulhada.
Não é o solo, é a sua gramatura,
ou na solidez a ranhura
que em teia se espraia.
Não é a praia, mas a concha dura
que remanesce à fratura
da sua anterior simetria.

















Marcantonio

sexta-feira, 18 de março de 2011

QUINZE PAISAGENS COM SOL, QUINZE COM LUA (14)

Da janela do vôo noturno
a cidade parece uma galáxia
ancorada
junto ao Atlântico que não pode
submergi-la para apagá-la.

Dirão que essa comparação,
além de gasta,
não é apropriada
por fugir à escala humana?

Mas, se os gregos,
que não conheciam
a luz elétrica (embora tenham
reservado para ela um nome),
fixavam seus heróis nas constelações,
eu trago as estrelas à terra
onde se ocultam os heróis.

Não é licença poética:
tal como não posso ocupar sozinho
um ponto qualquer do vácuo
entre as estrelas,
não parece haver um só homem
no vazio entremeado às luzes da cidade
vista daqui.
Galáxia, portanto.

Imagino que ao amanhecer
ocorram duas ocultações cósmicas.















Marcantonio

quinta-feira, 17 de março de 2011

QUINZE PAISAGENS COM SOL, QUINZE COM LUA (13)

Enquanto falo da paisagem,
falo também do olhar
que a percorre com vagar
- em ilusão táctil –
sobre um tapete voador
de onde não se avistam
meridianos, trópicos ou
qualquer linha do equador.

Enquanto falo da paisagem,
falo também da miragem,
que a língua sobre ela avia:
revolve os campos de cor;
lavra nas margens texturas
e desloca o ponto de fuga
das entrelinhas
para o plano da arquitetura.

Enquanto falo da paisagem,
falo ainda do pensamento,
o anatomista,
que fende a pele da vista,
e que de tudo que deflora
as entranhas exuma:
capaz de eviscerar o céu,
buscando o órgão inflamado
que ressuma a aurora.























Marcantonio

quarta-feira, 16 de março de 2011

QUINZE PAISAGENS COM SOL, QUINZE COM LUA (12)

Os deuses amam a dúvida humana.
Qualquer fé clara
lhes desagrada como impertinente
familiaridade.

Por isso separaram a luz das trevas,
e puseram na noite a lua de sentinela:
baço espelho do sol.

Então, se desfizeram de suas vestes
radiosas
e se divertiram com o paradoxo
de estarem nus, mas camuflados
num labirinto de sombras
onde brincam com os ecos.

Sabiam que os humanos,
criados para o medo,
à noite seriam apenas ouvidos
para algum ruído divino.

Os deuses, astutos,
crêem que um deus
que ao dia se desnudasse,
seria despercebido.






















Marcantonio

terça-feira, 15 de março de 2011

QUINZE PAISAGENS COM SOL, QUINZE COM LUA (11)

Eu poderia mostrar
algumas paisagens inéditas,
não as que eu tenha visto de fato,
mas tantas que são aparatos
inventados
por fora da moldura pérfida do dia.
E quem não julgaria
essas íntimas pradarias
como tridimensionais?
Porque os olhos têm função de adesivo
para unir com assombro
sobras e resíduos de dias banais
em camadas, em relevos
de cantos agressivos
e fazer de flagrantes mais assíduos
volumes alucinatórios mais que reais.

Estes são meus talentos de andarilho:
recortar, colar, raspar, desenhar por cima,
pois as mais densas paisagens
são palimpsestos de sonhos sem brilho
de inutilidades e unidades sem prática.
Eis, por exemplo, um rio flutuando
sobre o solo vivo, serpente transparente
de escamas flácidas
das lágrimas que ninguém chorou por mim.
E sobre ele a ponte feita das lacunas emendadas
de todo tempo ido para o fim.
Se chover, serão gotas cristalizadas
de uma sudorese vagamente luminosa
que desfoca aquela montanha, monturo
de rosas secas colhidas nos cemitérios.
Vê que há algum mistério nessas árvores
feitas de mechas engessadas
no exato momento em que o vento álacre
as curvava.
Por fim, o solo arenoso não é nada mais
do que a moagem das cascas das feridas
não fatais.

Não escapo, portanto, no almoxarifado das ruas
desertas,
ao entulho das memórias da não-história
do que foi, mas não vai,
para compor assemblagem aberta,
uma bricolagem espúria,
costura de veduta-frankenstein.














Marcantonio

segunda-feira, 14 de março de 2011

QUINZE PAISAGENS COM SOL, QUINZE COM LUA (10)

O carvão já não crepita,
mas ainda exala o hálito
quente.
A lua cega o sopra, afã
de ocultar-se sob o fogo
novamente.

Loucura, tentativa vã:
ignora que seu alento
não é ardente,
e tornando o sono mais
dormente,
esparge cinza alva e fria.

Espera. O sol já virá
consequente
atear fogo ao borralho
da noite
e acender para ti o dia.


domingo, 13 de março de 2011

QUINZE PAISAGENS COM SOL, QUINZE COM LUA (9)

Vejo nuvens
contornadas
por um roxo
enigmático.

São bordas adesivas
que as atracam
como continentes
cartografados
sobre a atmosfera
aquarelada.

Estranho aquela
que contém
(ou encarna)
um hipopótamo:
pesado bicho
para se tornar aéreo!

Pensando bem,
há uma trilha natural
entre potamós
e metéoros.


sábado, 12 de março de 2011

QUINZE PAISAGENS COM SOL, QUINZE COM LUA (8)

Eu queria fazer um haicai
que apenas registrasse essa

lua repousada
(prefácio de madrugada)
no piso da sala.

Entretanto, não foi possível,
pois perco tempo cismando:
como pude saber que é ela
nessa forma quadrangulada?

Por que no chão vejo a lua
em vez do vão da janela?


sexta-feira, 11 de março de 2011

QUINZE PAISAGENS COM SOL, QUINZE COM LUA (7)

Por vezes,
em meio à aridez
dos meus domínios
desertos,
ocorrem prodígios:
meus olhos,
Lázaros amortecidos
entre faixas oclusivas,
despertam
para a paisagem
do afeto.


quinta-feira, 10 de março de 2011

QUINZE PAISAGENS COM SOL, QUINZE COM LUA (6)

Prontidão de madrugada:
não me basta apenas
ouvir o som da rã
caindo no velho tanque
d’água.

Preciso capturá-la,
dela fazer uma cobaia
e dissecá-la ocidentalmente
como parte da paisagem.

Não o animal propriamente,
mas a  imagem.

quarta-feira, 9 de março de 2011

QUINZE PAISAGENS COM SOL, QUINZE COM LUA (5)

Verto uma afluência
de sombras noturnas
que não se dissipam
na foz
do mar azul turquesa
do dia.

Surge desse encontro
de tintas,
faixa de intersecções
cromáticas
expansivas
sobre o plano úmido.

Manchas com frações
miscíveis,
e áreas recuadas que
permanecem intactas.


terça-feira, 8 de março de 2011

QUINZE PAISAGENS COM SOL, QUINZE COM LUA (4)

Na madrugada
a janela não contrasta tanto
com a paisagem verídica.

Passa uma motocicleta com uma vida
isolada.
Passa um carro branco com duas vidas
colaterais.
Passa um ônibus ancho com uma dúzia de vidas
sentadas.

Passa aflita,
anunciando o enigma da sorte,
a sirene da desdita:
agudo risco de morte.

segunda-feira, 7 de março de 2011

QUINZE PAISAGENS COM SOL, QUINZE COM LUA (3)

Na poça rente à calçada
Atira-se de ponta-cabeça
A árvore urbana,
Cansada, insana.

domingo, 6 de março de 2011

QUINZE PAISAGENS COM SOL, QUINZE COM LUA (2)

Céu de lã cinzenta,
pesado sobretudo.

Numa fresta,
a lua-auréola:
botão de
madrepérola.

sexta-feira, 4 de março de 2011

QUINZE PAISAGENS COM SOL, QUINZE COM LUA (PREÂMBULO)

O homem caminha
na paisagem
dentro e fora
da linha.

Esfrega nos olhos
os nomes que inventam o que ele vê.

Ele diz:
           Árvore!
           Campo!
           Animal!
           Rio!
           Sol!
           Céu!

           Se eu
           Sinto:

                    Eis a paisagem!

quinta-feira, 3 de março de 2011

ROSTOS - MODOS DE CRIAR RETRATOS (FINAL)

É tarde.
O sol se põe.
A fraca luz aplaina os teus relevos.

E prosseguir sob a luz da lâmpada
Seria como passar à tonalidade
De sol menor,
Ou recordar a manhã
Com palavras entardecidas:
Não poderia confiar na fidelidade
Dos matizes que tênues mudam
De temperatura.

É um fato magnífico que as cores
Anoiteçam e amanheçam,
E é tão correspondente aos ciclos
De auroras e crepúsculos que temos
Na alma e no corpo.
Correto seria dizeres:
“Meus cabelos castanhos-anoitecendo”
Ou “minha pele está rosa-amanhecer”.
Pois
As cores têm horários, graus de lucidez,
E não posso unir horas distantes
No teu retrato. Aguardemos.

Mas se fora de outro tipo a minha arte,
Amasse o mármore ou a argila,
Fosse eu um escultor,
Poderia no escuro ver com meus dedos
A temperatura da tua pele e a essência
Incolor da tua face,
E assim transferi-las à matéria diversa.

Porém, desse modo,
Talvez nos sentíssemos mais tentados
A deixar inacabado o teu retrato.

Vênus de Colona, cópia da Afrodite de Cnido

quarta-feira, 2 de março de 2011

ROSTOS - MODOS DE CRIAR RETRATOS (39)

O esboço
Não é o esqueleto da figura,
Não é osso que subjaz à expressão.
O esboço
Não é um puçá que captura
O peixe na superfície muda da feição.
O esboço
Não é caligrafia exata e pura
Do que diz o olho à perícia da mão.

O esboço
Pode ser corte fundo, cesura
Transpassando a compostura
Faceta que oculta a humana condição.

Van Gogh, Sorrow, desenho

terça-feira, 1 de março de 2011

ROSTOS - MODOS DE CRIAR RETRATOS (38)

Apreender a sua face instável
Exige extrema concentração
Para não me perder em visões
Impressionistas.

Porque a tua face é um reflexo
Na água,
E há um sopro volitivo que a faz
Ondular.

Tu entendes essa instabilidade
De linhas,
Esse estranho registro do sólido
No líquido,
Da opacidade na transparência?

Requer paciência de pescador,
Pois a imagem se movimenta
Na superfície, mas permanece:
O brilho, a nitidez e o contraste
Ajustam-se imprevisíveis pela
Freqüência
Das ondas da tua respiração.