Imagem do cabeçalho: "O Grande Canal de Veneza" (detalhe) de Turner

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

ABECEDÁRIO (z)



“Z”, DE ZODÌACO

Suspensos no ar
Há moldes invisíveis de mãos,
Feitos em não sei qual matéria permanente.

Vez ou outra,
Enganchamos os cabelos
Na constrição de alguma garra;
Ou algum indicador fixo
Reproduz, sem intenção,
O arco de nossas sobrancelhas;
Ou um polegar se aplica às nossas faces
Como se as quisesse virar para o outro lado.
Mãos abertas, ocas e alongadas
Podem fazer par acidental
Com uma de nossas mãos
Para batermos palmas sem som.

Talvez ao recuarmos recebamos
Tapinhas nas escápulas,
Ou nos ponhamos a espantar moscas inexistentes.

Ou cortemos o ar com a quintessência
De lâmina numa espada fictícia.

Tantas destras e sinistras,
Flutuantes móbiles,
Devem ser enigmas de gestos não concluídos,
E apenas poderemos interpretá-los
Se calçarmos como luvas de gesso
Essas mãos alienadas.


Anselm Kiefer, Merkaba, 2011



domingo, 25 de agosto de 2013

ABECEDÁRIO (x)



“X”, DE XEQUE

Param as rodas
E cada coisa giratória.
Repousa a palheta
Do aerofone e tudo o mais
Que seja vibrátil,
Tal qual se trava a língua
Ante o ácido verbal,
Coalho da oratória.

Emperra-se o mecanismo
Que ajusta os telescópicos
Girassóis
Quando ainda estão
Cabisbaixos para o sul.

A linha condutora
Do sol
Rompe-se
E o fixa,
Broche
Num colo azul.

As horas entrançam-se,
Lavor supra-aracnídeo
De teia pegajosa.
E dessedenta-se o sal
Do ar
Com as pétalas das rosas.

Nunca as árvores foram
Tão árvores:
Suas raízes encaminham
A seiva bruta do silêncio
Ao refino das copas,
Antes eloqüentes, ora surdas.

As vidraças estão jateadas
Pelos últimos beijos
Do vento gélido
Agora engessado,
E pássaros cristalizam-se
Sobre a galhada,
Frutos emplumados.

O rio cruza seus braços
Ante o estorvo
Do mar,
Faz-se lago opaco.
E, se tornar a correr,
Retrocederá:
Sua nascente será sorvo.


Antoni Tapies, Journal, litografia, 1968.