Imagem do cabeçalho: "O Grande Canal de Veneza" (detalhe) de Turner

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

COLEÇÃO PARTICULAR (8)

FORÇA DESNECESSÁRIA

Terei voltado à superfície
Se não vejo mais o limite
Que o céu impõe ao mar?

Por trás das retinas adernadas
Tudo é imensa neblina
Sobre o plano oceânico.

Só ouço a percussão remota
Das ondas que se chocam
Contra as muradas do crânio.

No nauseante balançar
De águas tão soturnas
Já deve estar dissolvida
Qualquer suposta coerência
Dos meus atos.

Ah, a amnésia se aprofunda,
Uma âncora descomedida,
Para puxar ao sem-fundo
A frágil e banal corrente
Dos fatos da minha vida...

Julio González,  Cabeça Reclinada, ferro, 1930

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

COLEÇÃO PARTICULAR (7)

SOMBR-AÇÂO

Sombra que,
Cronométrica,
Desce pelas paredes,
Baixa-mar
Seca e sem sal.

Sombra que,
Roedora,
Devora ilesa,
Na ratoeira,
A isca dum filete de sol.

Sombra que,
Estrategista atrevida,
Invade o túnel
Pela saída.


Mark Rotko, Number 61, óleo s/ tela, 1953

domingo, 22 de janeiro de 2012

COLEÇÃO PARTICULAR (6)

ILH-EU?

Precisa ser
Numa ilha,
Desiderata.
Ali o poema não é enfurnado
(Núncio precário)
Numa garrafa
A lançar-se ao mar.
Ao contrário:
É trilha para dentro da mata
Insular.


Howard Hodgkin, After Matisse, óleo s/ madeira, 1995

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

COLEÇÃO PARTICULAR (5)

CONSENTIMENTO

Nunca ou agora,
Nada acontece
Na ágora.

Os olhos calam,
As bocas olham.


Jean Dubuffet, Tumultuous Landscape, tinta s/ papel, 1958

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

COLEÇÃO PARTICULAR (4)

AO REDOR DO SOL

Terminado o outono,
Ainda gravavam a terra
Os meus passos átonos.

Ao findar o inverno,
Ainda gerava nascentes
Meu degelo interno.

Encerrada a primavera,
Ainda não estava isento,
Sob a hera, de florescer.

Mas ao fim do verão, terá
Minha pele uma dívida
Lívida, insolvível com o sol
Ou terei saldo para solver?



Hellen Frankenthaler, Persian Garden, litografia, 1966.

sexta-feira, 13 de janeiro de 2012

COLEÇÃO PARTICULAR (3)

O AGREGADO

A morte não é um invasor.
Não é senão um hóspede muito educado,
Fleumático e erudito professor de latim
Que ocupa o cômodo mais modesto da casa.
Senta-se conosco à mesa,
E com olhos fixos no prato
Sorve a sopa rala, nossa única refeição,
Limpa com cuidado os lábios no guardanapo,
E da mesa retorna ao quarto
Com um sorriso frugal e de fingida paciência,
De quem se basta apenas com o antepasto.


Georges Rouault, Um Juiz, 1935

quinta-feira, 12 de janeiro de 2012

COLEÇÃO PARTICULAR (2)

TROMBOS

Confesso por nós:
Eu tinha a ousadia
De sonhar.
Os sonhos se investiam
Pelas artérias dilatadas,
E mantinham irrigadas
As vísceras da realidade.

Era ainda agora... Mas
Que resíduos adiposos
Me esclerosaram,
Em estanque índivíduo,
Tão precocemente?

Algo estacionou os sonhos
Em coágulos de memória,
Como uma corda com nós
Muito espaçados.


Antoni Tàpies, Alaya, Técnica mista, 1998

quarta-feira, 11 de janeiro de 2012

COLEÇÃO PARTICULAR (1)

CURATIVO

De que vale
Na fala bruta
E concisa,
A secreta volúpia
Da palavra ferida
Se no olvido alheio
Ela cicatriza?


Frantisek Kupka, Musique,  óleo s/ tela, 1936.

terça-feira, 10 de janeiro de 2012

TEMPO DE EXPOSIÇÃO (Final)

CÂMERA

Ciclope com lente,
Vigilante  faminto,
Devoras aqueles
Que viajam na luz
Próximos à praia
Da tua ilha cúbica.

Só se escapa da captura
Quando vaza o teu olho
A chuva de lanças
Da escuridão total.


Robert Doisneau, Hell, 1952

domingo, 8 de janeiro de 2012

TEMPO DE EXPOSIÇÃO (74)

MAR OU PARAÍSO

Eva ou Vênus,
Cona ou concha,
No teu talho encaixo
Atalho atrito,
E
Fundidos retornamos
Fundantes fodendo:
Nasce aliterado
Nosso próprio
Mito.


Edward Weston, Nude on the Sand, Oceano, 1936

terça-feira, 3 de janeiro de 2012

TEMPO DE EXPOSIÇÃO (73)

EM PARTES

Talvez fosse aquela Babel
Não uma torre
Desafiando o céu,
Mas o movimento íntegro
Dum cosmo paralelo, rival
Do ciumento caos original;
E nela estariam unidos
A percepção,
A ação,
E o nome.

Quiçá desde aquele trauma
Disjuntivo -
Que não seria de nações,
Porém, de indivíduos -
O mundo não gire, mas
Se distorça, feito palavra,
Dentro de cada Homem.


Andreas Feininger, Empire State Building, 1940.

domingo, 1 de janeiro de 2012

TEMPO DE EXPOSIÇÃO (72)

OBJETIVAMENTE

Eu já te vi
Em outra pessoa,
Com outro nome,
Outro endereço,
Diversa situação.
Era outro ano,
Outro pano de fundo,
Outra estação.

Eu já fiz colagem
Da tua alma
Noutro corpo,
Eram tão parecidas,
As personalidades:
Intercambiáveis.

Já passei por ti
Quando estavas
À janela de outra vida
Contemporânea,
Mas tinhas novo rosto,
Baixa estatura,
Outra compleição
Orgânica.

Por momentos
Flagrei-te com mil pernas
Em distantes cidades
Da Ásia, América, Europa
Oceania,
E usavas máscara
De multidão:
Um gesto de punho
Cerrado bastava
Como identificação.

Sim, vejo tantas pessoas
Geminadas
Com outras pessoas:
Parece fulana,
Lembra-me sicrano;
Tanto que deduzi
Ser um cisma subjetivo
A solidão.

Pois a única pessoa
Que jamais vi
Em outra pessoa
Sou eu mesmo.
Estranho sujeito
Sem essa objetiva
Transposição.

Então, se eu dissesse
Que já me vi em ti,
Desconfiaria se não eras
Minha invenção.


Josef Koudelka, em Portugal, 1976.