Imagem do cabeçalho: "O Grande Canal de Veneza" (detalhe) de Turner

terça-feira, 31 de maio de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (XLIV)

46 – natureza-morta (canto de atelier)

Pintei uma natureza-morta
para me lembrar de me tornar o que sou.
Como fundo, uma parede de azulejos banais
e uma nesga de tela voltada contra ela.
Sobre uma mesinha velha objetos do meu convívio:
pincéis sujos mergulhados em aguarrás,
pincéis limpos reunidos em latas de cerveja,
uma paleta imunda sobre monte de jornais.
Situada mais atrás, uma pilha com três livros:
Ilíada, o Rei Lear e O Sobrinho de Rameau, de Diderot,
meus mortos-vivos.
À esquerda, um Klee em reprodução
lembrando-me a necessidade de tornar algo visível
da minha alma de menino,
e uma gravura barata das Donzelas de Avignon,
para almejar em vão a fúria criativa de Picasso.
No centro, ocupando muito espaço,
um velho livro aberto, símbolo do que nunca termino;
sobre ele, um CD com sinfonia de Mahler, a Quinta,
e a capa do Crepúsculo dos Ídolos, de Nietzsche.
Ao lado, trinchas para cobrir grandes superfícies.
À direita, tubos de cores, plasma de quem pinta;
um cinzeiro com um cigarro que queima rápido
suspirando um filete de fumaça,
e, enfim, terminando a peça, um trapo sujo de tinta.


11 comentários:

Mariana disse...

"O que sou, quero dizer a mim mesmo / para que venha a sabê-lo pouco a pouco. / Sejam minhas palavras não um canto / impossível agora mas retrato / que socorra e console enquanto espero / e receba o que não posso mais conter."
Mário Faustino, "Prelúdio".

Delirando um pouco. Abraço.

dade amorim disse...

E ainda que mal lhe pergunte, por que não pode nos mostrar uma foto, só umazinha? Fiquei com vontade de ver tudo isso, uma natureza morta quase viva.
Tenho que corrigir uma coisa que te escrevi uma vez e sempre esqueço: o rio que me salvou de Zenão de Eleia era o de Heráclito, que me salvou também de Parmênides, citado por engano. Lembra desse comentário no blog?

Beijo.

dade amorim disse...

Ah, esqueci de dizer que gostei muito mesmo do poema.

Luiza Maciel Nogueira disse...

Poxa, estou coma Dade uma foto não seria mal. Espetacular! Bjss

Lu disse...

Fiquei aqui pensando em como descrever um homem a partir de sua leitura. Ao lado, aqui na mesa, um livro de Virginia Woolf parecia rir da minha ingenuidade. rs

bacio

Ps. Acho que a imagem não se faz necessário, afinal, é natureza morta e a nossa mente já desenhas muitas possibilidades. rs

Anônimo disse...

Uau!

Luciana Soriano disse...

Oi Marco!

Seu poema me fez viajar - direto da minha mesa no trabalho para meu atelier e tudo que deixei por lá.

Interessou-me, sobretudo, o símbolo do que deixo inacabado. Se esse é um traço teu, temos muito em comum! rsrsrsrsrs

Beijos

Lu

Unknown disse...

Marco, sensacional o seu poema. Sem querer comparar, mas me lembrei de um outro de minha autoria com tema semelhante. Se quiser leia aqui:
http://laloarias.blogspot.com/search/label/Modo%20de%20Fazer

grande abraço.

Tania regina Contreiras disse...

Talvez um dia, por alguma razão, eu deixe de gostar de um poema seu (será?)...mas tudo o que leio (meus verbos de sempre ao ler seus poemas) arrebata e inquieta...
Muito bom! Ah, e vou ler o de Lalo que ele cita acima...
abraços,

Cris de Souza disse...

ulalá!

atelier digno de vernissage...

baccio, poète.

Cris de Souza disse...

(leia " bisou")