Imagem do cabeçalho: "O Grande Canal de Veneza" (detalhe) de Turner

domingo, 22 de maio de 2011

INTERIORES E VIDA SILENCIOSA (XXXVI)

38 – natureza-morta com backup

Gavetas são, certamente,
um arquivo externo da memória,
guardam o que não é urgente
e pode esperar por uma hora
ou por algumas décadas.

Já encontrei engavetados
pedaços secos de pétalas
que outrora perfumavam o ar;
um velho estojo de pó de arroz;
uma página de jornal dos anos setenta
que ficou para ser lida depois;
um par de óculos com uma perna amputada;
uma caneta tinteiro com uma pena dourada
e sem escrita;
duas mechas de cabelos castanhos
algemadas por laço de fita,
colhidas nos tempos de antanho
a uma cabeça que ficou maior e encanecida;
e encontrei até, para meu espanto,
os extremos escritos de uma vida
esquecidos lá dentro:
em envelope sebento,
um atestado de óbito envolvido
por uma certidão de nascimento.

Joaquín Torres Garcia, Composição Construtiva, 1943

7 comentários:

João A. Quadrado disse...

[a gaveta, o tudo em nós, que nunca aconteceu porque essa possibilidade de tudo aquilo que poderia ter acontecido... nosso vivo arquivo-morto, as gavetas do nosso próprio tempo]

um imenso abraço, Marcantonio

Leonardo B.

Tania regina Contreiras disse...

Gavetas são coisas tão íntimas...abri-las torna-se um ritual, é sagrado.
Abraços, Marquinho...

Quintal de Om disse...

Marco querido,
vim matar a saudade de teus versos e histórias entrelaçadas, e mistérios, universos, mundos paralelos que cria com tamanha exatidão.

Gosto demais da sua caneta!

Meu beijo, querido.
Samara Bassi.

marlene edir severino disse...

Marcantonio,

E o que postergamos fica na gaveta
para o depois
que demora tanto
que às vezes nos causa
espanto

Um abraço!

Marlene

Kenia Santos disse...

As gavetas guardam tesouros esquecidos, moeda de troca de memórias que a gente às vezes quer, às vezes não quer mais.

=*

Lu disse...

Minhas gavetas vivem cheias de rascunhos e um dia eu sei que vou passar tudo a limpo, mas não tenho pressa. As vezes acho graça em surpreender-me com meus pedaços de papéis. Sempre me pergunto "são meus mesmos?" rs

bacio

Cris de Souza disse...

atchim!(sério, estou gripada)

o desfecho deste poema provocou-me coceira. que maldade...

curioso é abrir a gaveta é dar de cara com a nossa careta.

beijo, criatura azulada.