Imagem do cabeçalho: "O Grande Canal de Veneza" (detalhe) de Turner

segunda-feira, 3 de janeiro de 2011

APONTAMENTO NA BORDA DO DIA (40)

À guisa de epígrafe, este poema de Fred Caju:

O JABUTI

Lento, passo a passo, passivo.
O jabuti tem sua vida monótona e previsível:
nascer e morrer.
Durante a vida não se preocupa em mudar o seu ritmo,
já está conformado com o destino
que seus antepassados escolheram.
Poderia mudar se quisesse,
mas, permanece totalmente estático.

Nota ao leitor:
Quaisquer semelhanças, neste poema,
entre o jabuti e o homem é mera coincidência.


Hoje acompanhei alguém a um posto de saúde
Da rede pública da cidade do Rio de Janeiro.
Eu era um guia para um inferno de indiferença.
Todo um pensamento revoltoso meu
Tornou-se um bestiário pasmado num beco sem saída:
Vi jabutis “trabalhando”. Vi jabutis na fila,
Aguardando para serem encaminhados
Para outras filas e destas para uma fila de meses
À espera de um exame.

Uma funcionária-jabuti surge não sei de onde
E diz à fila:
- Desculpem a demora, mas eu estava resolvendo
Um problema de um “colega” de vocês.

Ó grande deus dos jabutis, então é isso?
O povo pobre é uma subespécie de jabutis,
Colegas de anonimato e desesperança,
Colegas de aceitação do próprio destino.
Talvez a funcionária expressasse alguma vergonha
Por fazer parte desse grande jabuti-sistema ineficaz
Mantido por uma natural jabuticidade de todos nós.
Mas em algum lugar deve haver um jabuti cínico
Mentindo aos seus não-colegas de que tudo corre bem
No interesse da subespécie. E parece que eles acreditam
Que não possa ser de outro jeito, cândidos jabutis.
Afinal o dinheiro é a única coisa que apressa um jabuti
E quem não o tem se dá menos conta da própria condição.

E eu, jabuti-poeta de merda, saí dali revoltado
Com os meus poeminhas anódinos onde tasco
Alguma flor babaca, algum canto de pássaro,
Alguma nesga de mar abstrato, como se a poesia
Não pudesse ser senão escapismo diante dos extremos
Da condição humana. Tento me desculpar a mim mesmo.
Tornar a vida suportável pela ilusão
Talvez seja a mais natural forma de revolta,
Incluindo a desilusão e o cansaço do próprio revoltado.

Ah, os otimistas se esforçam para pensar por fatias,
Para rolar acima a pedra da justificativa da existência.
Pasmo, no meu pessimismo talvez tão disparatado
Quanto qualquer otimismo, arco apenas com o absurdo
De apenas existir ou não,
No desconforto de sonhar com algum jardim
Em que a minha condição de jabuti seja menos contrastada.

9 comentários:

Zélia Guardiano disse...

Marcantonio
Isto é um soco justo e mais do que necessário, bem na boca do estômago!
É preciso acordar...
Para a vida tão insípida, busco pretextos: por isso, vergonhosamente, ando às voltas com bem-te-vis, beija-flores e hortênsias; com eclipses e com estrelas agonizantes, quando a agonia está aqui mesmo: não há necessidade de fazer as viagens que faço, de anos-luz...
Sei muito bem: jabutis são piores que serpentes! São mais peçonhentos...
Ainda assim, aqui estou, preparando uns versinhos idiotas, ridículos, que falam de perfume, de incenso...
Por favor, permita-me imaginar minha assinatura ao lado da sua, ao final deste importante manifesto!
Um abraço, meu querido amigo, carregado de profunda reverência!!!

S. disse...

baby, eu me irrito com os jabutis e comigo mesmo enquanto um deles. mas jabuti em hospital publico ng merece. feliz 2011. beijinhos.

Tania regina Contreiras disse...

Pego de Zélia emprestadas as palavras:
"Por favor, permita-me imaginar minha assinatura ao lado da sua, ao final deste importante manifesto!"

Sem mais palavras. E sem poesia.
Abraços,

Anônimo disse...

O poeta deixa a dor que imaginava sentir pela realidade jabutinesca da vida. Não é só na fila da saúde pública que vemos jabutis. Não é por outra razão que o doente é chamado de paciente, e que ninguém é mais tratado pelo seu nome de batismo, mas pelo de sua doença.
A poesia serve também para expressar manifestos. Talvez só sirva para isso. E não é pouco.

Abraços e um feliz 2011 de novo e de novo e de novo...

Carla Diacov disse...

como da mesma espécie)jaboti(

fiquei comovida por pelo menos uns 2011 anos!


falamo-nos?


beijos.

Cris de Souza disse...

eta, ferro!!!

poema cascudo, cavado, catártico...

beijo cristal.

(é muito pra jabuti pra pouca grama)

Fred Caju disse...

Honra ter um epígrafe em seu manifesto. E é assim que tiramos o casco e caminhamos com duas pernas.

José Carlos Brandão disse...

... mas eu lembro logo da tartaruga de Zenão de Enéia e o caminho a percorrer que se multiplica num novo caminho que se multiplica.

Interessante como um jabuti, uma tartaruga, um cágado que seja, que já é feio até no nome, podem nos oferecer tanto para refletir sobre a vida.

Abração, Marcantonio.

Daniel Andrade disse...

Camarada eu poeta menor vindo do interior... e toda aquela coisa que Belchior diz... Digo: o poema do Jabuti foi longe e se multiplicou... Eu vou tentar jogar meu olhar rasteiro em uma planilha word e apressar o passo de um poema num compaço um pouco mais largo que um Dó médio de Jabuti.
Vim do Sábado de Caju para cá e não me arrempendi.
Muitas graças neste 2011!